• Valdemar Munaro
  • 17/04/2022
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Antes que os demônios voltem

Valdemar Munaro


Fatos e personagens que credenciam milhões de pessoas à fé e à tradição cristãs são celebrados e revividos particularmente nestes dias, os mais santos do ano. Decorridos dois mil anos, continuam a irradiar verdades e ensinamentos que não encontramos em outro tempo e lugar. Vívidos e densos, demarcam o antes e o depois da história, extrapolam veias teológicas e revelam conteúdos que transcendem o muro das igrejas. Roger Garaudy, intelectual marxista francês, lamentava esquisitamente o 'sequestro' do Galileu pelos cristãos e reivindicava sua devolução à inteira humanidade: "Homens de igreja, devolvei-nos o Cristo!'

Quem, com efeito, de coração simples e honesto, atender aos relatos da paixão do Nazareno não permanece indiferente. 'Divisor de águas', 'pedra de tropeço' no caminho das sabedorias humanas, Jesus de Nazaré é espinha dorsal do destino e sentido do mundo. Gente de toda estirpe, intelectual ou inculta, nobre ou plebeia, rica ou pobre se sente interpelada por aqueles acontecimentos bíblicos. Discorrer sobre 'Deus', segundo Dostoievski, tornou-se assunto manso e contornável se comparado ao 'fato' Cristo que, desde então, engarrafa e complica o emaranhado fluxo de argumentos e discursos que formulamos. Diante do crucificado, 'sábios' se tornam estultos, desprezados e humildes se erguem e são exaltados. Sem Cristo, as coisas teriam outra ordem e viveríamos marasmos existenciais infindáveis como num eterno retorno.

As narrativas relacionadas ao Servo de Javé levam-nos a uma cristologia repleta de abismos físicos, morais e espirituais. Ali se encontram realidades humanas e divinas amalgamadas a acontecimentos e palavras que dão novo significado ao que vivenciamos e fazemos. A cruz de Cristo não é só revelação do Divino antes desconhecido, mas é também revelação dos recônditos e sombrios mistérios que medram as subjetividades. O crucificado misturou-se à nossa condição de criaturas, retratou nossa miséria e/ou grandeza, quebrou o absurdo de nossos sofrimentos, orientou nossa parca e agudizada liberdade, purificou nossa porca, infeliz e anêmica justiça, iluminou nossa carunchada convivência cívica, corrigiu o sentido pálido e obscuro que dávamos à vida.

Embora fosse a encarnação do amor, da justiça e da vida, ele foi crucificado. "Fizemos pouco caso dele", diz Isaías (53). Foi tratado como um idiota e tresloucado quando, na verdade, "tomou sobre si nossas enfermidades, e carregou os nossos sofrimentos; e nós o reputávamos como um castigado, ferido por Deus e humilhado. Ele foi castigado por nossos crimes e esmagado por nossas iniquidades; o castigo que nos salva pesou sobre ele; fomos curados graças às suas chagas" (Is 53).

O conhecido F. Nietzsche (1900), irreverente e alucinado, abriu as portas do século XX, supondo ser porta voz de uma sociedade em decomposição e pôs nos lábios de um louco a notícia do desaparecimento de Deus na alma contemporânea. Exaltando a morte de Deus, concluiu efeitos trágicos como se fossem vitoriosos no seu livro 'Assim Falou Zarathustra': "Como vamos confortar a nós mesmos, os assassinos de todos os assassinos? Aquilo que era mais sagrado e poderoso de tudo o que o mundo ainda possuíra sangrou até a morte sob nossas facas: quem vai enxugar esse sangue de nós? Que água existe para que nos limpemos? Que festivais de expiação, que jogos sagrados teremos de inventar? Será que a grandeza desse ato não é grande demais para nós? Será que nós mesmos não temos que nos tornar deuses apenas para parecer dignos dele? Nunca houve ato maior; e quem quer que nasça depois de nós – por causa desse ato pertencerá a uma história superior a toda história até então".

A 'morte de Deus' não tem lógica, nem é científica (se morrer, não é Deus e se for Deus, não morre), mas se, porventura, alguém conseguir extirpar Deus de sua vida, arcará com as consequências de um crime inexpiável. A mensagem nietzschiana pretende tirar consolação do ato deicida crendo atingir uma superioridade histórica.

É-nos permitido imaginar o esforço de muitos (que vieram antes de Cristo) para encontrar a sabedoria. O matemático Pitágoras (sec. VI a. C.), o 'iluminado' Buda (483 a. C.), o sábio Sócrates (399 a. C.), o filósofo Platão (347 a. c), o grande Aristóteles (322 a. C.), o poderoso Júlio César (44 a. C.) ou o célebre orador Cícero (43 a. C.) são alguns exemplos. Se tivessem encontrado O ressuscitado, provavelmente, descobririam Nele a convergência e a foz de suas buscas sapienciais. A história, porém, diferentemente de Nietzsche, não seria superior em razão do ato criminoso e assassino impetrado pelos homens, mas pelo poder do Crucificado que venceu a morte e o pecado.

Agnósticos e ateus, como podemos ver, sobremaneira entre modernos e contemporâneos, entre eles Kant, Nietzsche, Voltaire, Rousseau, David Hume, Schopenhauer, Hegel, K. Marx, L. Feuerbach, A. Comte, A. Gramsci, Sigmund Freud, Sartre, Marcuse, Camus e outros tantos, incomodaram-se com Cristo (sem conseguir ignorá-Lo ou destruí-Lo) e desprezaram sua herança. Suas posições racionais não os desobrigaram, porém, da insana tarefa de escavar, alhures, motivos que pudessem justificar o empenho humano pela construção das utopias e dos paraísos terrestres.

O que sobrou daquele esforço titânico em achar sentido para um mundo niilista e sem Deus, foi investir e esperar pelo futuro feito não por mãos divinas, mas por homens dotados de ciência e razão. O que esses profetas e cientistas sociais nos propuseram foi, no fim das contas, esperar a conquista ou a chegada de uma humanidade apocalíptica e trágica que se expressará no advento, pelas vias da seiva evolucionista darwinista, de uma raça super humana (na linguagem de Nietzche), espécie de gente potente, delirante e genial, situada acima do bem e do mal, ou, esperar dos mecanismos e segredos da psicanálise por uma civilização desneurotizada e sem traumas, ou, enfim, esperar da força revolucionária, lavada e lavrada na cartilha marxista, por um mundo comunista, sem classes e sem injustiças.
Contudo, paradoxalmente, tais catequeses transformadoras, com sua práxis secular, prometeica e anti-evangélica, ensinam que devemos aguardar os super humanos construídos e moldados por artífices, eles mesmos, quebradiços e doidos (como o próprio Nietzsche que morreu sifilítico e enlouquecido) ou o mundo libertado das neuroses por mãos neuróticas e charlatãs (como as de Freud e seu discípulo behaviorista, J. Watson) ou o mundo livre de injustiças por feitores e arquitetos sociais, injustíssimos, hipócritas e podres (como Marx, Engels, Lenin, Stalin, Che Guevara, Fidel e tutti quanti).

Se, por um lado, há os que rejeitam a 'pedra angular', por outro, há uma gama infindável de pessoas que, ao longo da história, bebeu das fontes cristãs encontrando ali não os fardos pesados, mas a senda do caminho, o bálsamo para suas feridas e tribulações. Não há, para quem quer ser cristão, diminuição alguma de sofrimentos ou dificuldades pelo fato de crer, mas o discípulo que peregrinar este mundo na fé, tem em sua alma a lâmpada que ilumina seus passos. Àquele que caminha na fé, não lhe será tirada, tampouco, qualquer porção de inteligência e liberdade.

F. Dostoievski (1881), romancista russo, concluiu que as tribulações de Cristo são também as tribulações dos cristãos. Não estamos sós, nem somos primogênitos no que fazemos e vivemos. No texto 'O Grande Inquisidor' (extraído de Os Irmãos Karamazov), o autor indica, com rara beleza e profundidade (não visto na teologia oficial) quão próximas são as tribulações de Cristo com as dos homens. Exemplo, são as tentações do deserto (Mt 4).

Com efeito, Cristo, muito antes de ser pregado ao madeiro na Sexta-Feira Santa, anteviu os sinais de sua paixão nas adversidades do deserto. O deserto, como sabemos, está, física e paradigmaticamente, situado em terra virgem ou prostituída. O início de tudo, ninho do big bang, devia ser alucinantemente árido e sem vida, mas, se imaginarmos um futuro totalmente contaminado e destruído, a mesma fisionomia encontraremos lá.
Entretanto, apesar da aridez e da secura, os desertos guardam sementes de vida. Neles moram demônios, mas também raízes de fé e liberdade. Abraão, 'pai dos crentes' peregrinou no deserto, Israel, sua descendência, aprendeu a obediência às Leis e o 'caminho' pascal em desertos. No deserto, bodes expiatórios eram sacrificados, João Batista, à semelhança dos profetas, anunciou a era messiânica e Judas, o traidor, serviu-se dele para expiar seu remorso e se suicidar.

Os evangelistas Mateus, Marcos e Lucas narram que Jesus, conduzido pelo Espírito, foi ao deserto. Lá, depois de jejuar e orar durante os dias que lembram a quaresma, sentiu fome. Do mesmo modo como odores de putrefação atiçam e instigam hienas e cães selvagens saírem de suas sombras para disputar carnes vivas ou em decomposição, a fome desperta e atrai demônios. O homem faminto (de pão e de Deus) se torna presa de satânicos à espreita. Os famintos constituem matéria incandescente à manipulação, à instrumentalização, ao servilismo. A fome e a miséria, postas aos pés de perversos sedentos de poder, tornam-se escabelo no qual quaisquer formas de escravidão se assentam.

Ao sentir fome, Jesus recebeu a visita do demônio que o incitou a fugir da cruz. Do grego diá+bolos, o termo significa 'aquele que divide ou separa'. Se, de um lado, o sym+bolos reúne, ilumina, congrega e une, de outro, o diá+bolos divide, desagrega, confunde. O espírito diabólico é a fonte de conflitos e divisões entre humanos. Onde reina o espírito simbólico tende-se à comunhão, à harmonia, à claridade, à paz. O diabo, ao invés, promotor de conflitos e desvios, não visita Cristo em seu estado confortável; visita-o oportunisticamente em situação 'desértica', de fome e desamparo. Revestido de sorrateira intenção só visa dividir o Filho do Pai e o Pai do Filho.
É em situação de 'deserto' que somos tentados, não inversamente. Sob vicissitudes de fraqueza o diabo tentou Jesus propondo-lhe o milagre, o espetáculo, a autoridade como doces soluções para sua amarga missão.

Propôs-lhe enganosas e fáceis vias de enfrentamento das inevitáveis dificuldades e sofrimentos que a vida contém. Proposta diabólica é vender com 'baixo custo' as plenitudes, as liberdades, a salvação. Todo ser humano, de qualquer época, lugar e condição, nesse quesito, é e será tentado tanto quanto o foi Jesus.

A tentação do milagre pretende que se transformem magicamente pedras em pão. No anseio de riqueza o homem a quer sem o concurso do trabalho. Almeja a colheita do trigo sem o seu plantio, deseja percorrer caminhos permanecendo sentado. É a tentação de ganhar grátis o que muito custa, ter vida cômoda com modos malandros, ter progresso econômico gangrenado com astúcias de corrupção e desonestidade, obter prêmios sem mérito, bônus sem ônus, benefícios sem sacrifícios, pão sem grãos esmagados, prazer sem consciência, amor sem renúncia, nem sofrimento.

O espetáculo, por sua vez, é tentação que pretende transformar o virtual em real, substituindo realismos de acontecimentos e pessoas com ideais desconectados e imaginários. O espetáculo tornou-se a excitante, atualíssima tentação que nos leva para fora do modesto mundo verdadeiro que vivemos, a fim de nos lançar na ilusória fascinação do que ocorre nos filmes, teatros e virtualidades. O tentáculo das realidades virtuais seduz do mesmo modo como Satanás tentou Jesus e os homens do seu tempo. Transformar realidades em sonhos e sonhos em realidades é especialidade do 'diábolos'. O historiador Paul Jonhson nos assegura: os que fustigam para que fujamos do mundo real para irmos ao mundo da imaginação, assemelham-se aos demônios do deserto, nossos inimigos.

A mais terrível e sedutora tentação, enfim, é a da autoridade. Nela se aninha a adaga que atinge o cerne de nossa dignidade. O diabo, levando Jesus para uma colina, lhe disse: "Tudo isso que vês pode ser teu se, prostrado, me adorares". Moral da história: a mais terrível, sutil e perigosa das tentações está aqui, no enxerto sorrateiro de astúcias que conduzem os homens à servidão. A liberdade negociada é o início escravagista. Escravizarmos ou sermos escravizados é ladeira fácil, muito fácil, basta pouco, muito pouco; é suficiente uma dose de beleza, riqueza, poder ou força, uma pitada de fraqueza física ou moral, alguma porção de pobreza, carência, dívida, fome, sede, desejo ou enfermidade. Num toque de magia e sedução nos tornamos sutilmente dominadores ou dominados, escravizadores ou escravizados. A escravidão, quase sempre vista sob óticas exteriores, na verdade, não é um problema apenas histórico, social e político. É também e, sobretudo, drama das interioridades em ação. Sutil e perversamente, o enredo das relações humanas pode nos submeter fácil e flacidissimamente ao domínio dos outros em razão de nossas fraquezas. Mas também, inversamente, podemos nos transformar em astutos manipuladores das vidas alheias em razão de suas fragilidades.


No picadeiro da vida política e social sempre albergamos a companhia de partidos políticos, universidades, escolas, agentes sociais, igrejas, organismos e indivíduos dispostos, com suas ideologias e estratégias, prontos à manipulação. Tais demônios à espreita rondam nossas frágeis e vulneráveis liberdades. Forças diabólicas continuamente regem a vida dos outros sob a alegação de, pela prostração, obter ou dar dignidades. Jesus ensina que rastejamentos não se ajustam à dignidade dos filhos de Deus.

Se a tentação da autoridade engole e cerceia o dom e a graça de nossa liberdade, aprendemos que a prostituição da alma se iguala à morte. A fé autêntica não estrangula liberdades, mas, como diz Dostoievski, dilata. E, no entender de Tomás de Aquino, a fé não nasce do medo, nem da escravidão, mas da confiança, do amor e da liberdade. Não há amor sem liberdade, não há liberdade sem amor. Por essa via, compreendemos que, nenhum outro mestre respeita e promove a dignidade humana quanto Jesus. Nada Ele fez para nos assustar ou seduzir, obrigando-nos a aceitá-lo.
O preço da liberdade, entretanto, se chama responsabilidade. Na vitrine dos tempos hodiernos estão expostos sintomas de uma geração que ama ser livre, mas detesta ser responsável. Naqueles sintomas se escondem as sombras diabólicas, promotoras e difusoras de síndromes como de Peter Pan: a criança que não quer crescer. Alimentada e corroborada por covardias educacionais e ideológicas a síndrome de Peter Pana advoga o direito de não ser adulto e faz crer ser possível a felicidade sem responsabilidade. Todas as reinvindicações em voga estão encharcadas da consciência pelos direitos, mas sofrem anemias quando se trata de deveres. Sovados por doutrinas esquerdopáticas essa síndrome nos persegue dia e noite.

"De todas as tiranias, escreveu o escritor C. S. Lewis, uma tirania exercida pelo bem de suas vítimas pode ser a mais opressiva. Pode ser melhor viver governado por milionários ladrões que por moralistas onipotentes. A crueldade dos milionários ladrões pode às vezes dormir, a cupidez deles pode em algum momento ser saciada; porém aqueles que nos atormentam para nosso próprio bem nos atormentarão indefinidamente, pois fazem isso com a aprovação de suas consciências".

O 'diábolos' nos atormenta a fim de esvaziarmos a consciência das exigências morais. Na esfera política o caso é mais grave. O autor inglês, Kenneth Francis diz: "Não há nada pior que um Estado com uma consciência hiperativa. Como um agricultor excessivamente cioso, que deseja o melhor para seu gado antes que ele seja morto no matadouro. (...)

O marxista italiano Antônio Gramsci (1891 – 1937) disse que a transformação da cultura era de suma importância para a obtenção do poder político. É por isso que países comunistas têm Ministérios da Cultura. E não há melhor jeito de transformar a cultura que com livros, mídia, música, TV, filmes e outros tipos de entretenimento".

Abalroados pelas sutilezas da malícia, somos tentados pelo demônio a buscar não a 'porta estreita', mas a 'larga' que nos levará ao inferno. Na frase dita por um brasileiro bem corroído e corrompido, segundo a qual 'Deus é petista', esconde-se o musgo blasfematório no qual estamos metidos e que nos conduzirá para o brejo. Socialistas como ele, selam esquizofrenias espirituais e morais quando propõem uma cruz sem Cristo e um Cristo sem cruz. É uma ignomínia romântica fazer de Cristo um revolucionário descrucificado, como Barrabás ou Che Guevara. É outra ignomínia abjeta descristificar a cruz pela qual desesperados e miseráveis se desesperam e se miserabilizam ainda mais.

Nos marxismos enrustidos ou proclamados habitam inimigos do Crucificado que, sendo inocente e justo, nenhuma facilitação encontrou (até fel bebeu quando suplicou água) no suplício da cruz. Porcos também comem ou engolem pérolas porque não sabem ou não reconhecem seu valor e seu custo. Ingratidão e orgulho são, portanto, asas morais que guiam essa gente. Em tudo se contrapõem ao crucificado, por isso, o Homem de Nazaré não se ajusta ao petismo e seus asseclas. Destes, livre-nos Deus. E antes que voltem, urge, como Jesus, afastá-los do nosso caminho.
Santa Maria, 14/04/2022

*      O autor é professor de Filosofia na UNIFRA