• Roger Scruton
  • 12/06/2017
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A MANEIRA RUSSA DE MENTIR

(Publicado originalmente no www.midiasemmascara.org)

De 1918 a 1991, o Pravda (em russo, “verdade”) foi o principal jornal da União Soviética e órgão oficial do Comitê Central do PCUS, Partido Comunista da URSS.

Talvez o paradoxo mais famoso descoberto pelos filósofos gregos seja o do “mentiroso”. Um cretense diz que todos os cretenses são mentirosos: se o que ele diz é verdadeiro, então é falso. Simplificando, considere: “Esta frase é falsa.” Se for verdadeira é falsa, se falsa, verdadeira. Os antigos levavam a sério esse paradoxo, pois se o conceito de verdade é intrinsecamente contraditório, como o paradoxo implica, então todo o discurso, todo o argumento, toda a tomada de decisão racional ocorre em um vazio. Um filósofo antigo, Filitas de Cos, em seu desespero na busca de uma solução, cometeu suicídio. Mais recentemente, o grande lógico Alfred Tarski usou o paradoxo para argumentar que a verdade pode ser definida em uma linguagem somente através de uma “meta-linguagem” com um ponto de vista externo. Na visão de Tarski “Esta frase é falsa” não é uma frase possível. Mas eu acabei de escrevê-la!

Um filósofo sobressai-se como um traidor da tradição, Nietzsche, com a famosa declaração que não há verdades, apenas interpretações. A declaração de Nietzsche, se verdadeira, é falsa. Nietzsche, que era mais poeta do que filósofo, não era dissuadido por contradições: era mais importante em sua visão destruir o discurso ordinário do que resgatá-lo. Em seu rastro vieram as tropas de desconstrucionistas, pós-modernistas e relativistas, todos encantados com a idéia de que não há verdade. Que o que eu penso é tão bom quanto o que você pensa – de fato melhor, porque sou “eu” pensando. Se você me oferecer um cargo de professor apesar do fato de que minhas publicações não conterem nada que você reconheceria como verdadeiro ou significativo, então isso mostra que você é tão descolado quanto eu.

Não devemos nos surpreender assim se os nossos departamentos de humanas são agora preenchidos por “professores de pós-verdade”, que devem seu status intelectual às suas provas de que não há status intelectual a ser alcançado.

Tudo isso vem à mente ao refletir sobre o papel da verdade na diplomacia russa. A ideologia comunista descartou a idéia de verdade como se fosse uma construção burguesa. O que importava era poder — e você batizou como verdade aquelas doutrinas que o fornecem. Essa maneira invencível de marginalizar a realidade foi exposta para todos por Orwell, Koestler, Solzhenitsyn e, mais recentemente, Havel. Somente a educação em uma universidade moderna, com doses repetidas de Foucault, Deleuze e Vattimo, pode cegar para os perigos de uma filosofia que vê o poder como o verdadeiro objetivo do discurso. Infelizmente, essa educação existe, e temos que viver com o resultado disso.

Todos os que encontraram a máquina comunista estavam familiarizados com a abolição da distinção entre verdade e poder, incluindo companheiros de viagem como Eric Hobsbawm e Ralph Miliband, que aprovaram isso. O que importava ao Partido Comunista era a meta: a instalação do controle comunista sobre o máximo possível do mundo civilizado. O mito do “cerco capitalista” — a descrição da expansão militar soviética como uma “ofensiva de paz”, as invasões da Hungria, da Tchecoslováquia e do Afeganistão como “assistência fraterna”: tudo parte da diplomacia da pós-verdade. A falsificação do discurso político estendia-se às minúcias. Os judeus eram perseguidos não como judeus, mas como parte da conspiração burguesa-sionista-capitalista. Os católicos foram presos por “subversão da república em colaboração com uma potência estrangeira”. As tentativas da OTAN de instalar defesas antimísseis tornaram-se “atos de agressão que desestabilizavam a Europa”. E assim por diante. O resultado era uma espécie de discurso paranóico que não podia ser respondido com argumento racional, já que cada argumento era mais uma prova de que todos os que denunciavam as mentiras também as diziam. A máquina de propaganda soviética enfrentava todos os fatos gritando a plenos pulmões “mentiras!”, como um lógico louco que grita “essa frase é falsa!”

A paranóia institucionalizada não desapareceu com o colapso do comunismo. Poderá ser superada, mas apenas por uma imprensa livre, instituições livres e universidades que protegem a liberdade de expressão: coisas que estão sob ameaça em todo o mundo pós-verdade e que não existem na Rússia há cem anos. Quando foi mostrado que os mísseis russos derrubaram um avião civil malaio sobre a Ucrânia a resposta era outra vez “mentiras!” As acusações de doping de atletas russos, invasão de contas de e-mails dos EUA, mobilização de tropas na fronteira com a Polônia, movimentos de armamento para o enclave de Kaliningrado, constante violação do espaço aéreo da Suécia — todos encontraram a mesma resposta. A premissa da diplomacia russa é: “Não há verdade e portanto tudo o que você diz é uma mentira.” O que, se verdadeiro, é falso. Como foi demonstrado.


Roger Scruton, “The Russian way of lying”, The Spectator, 23 de Março de 2017.

Tradução: Guilherme Pradi Adam
Revisão: Rodrigo Carmo
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