• Sérgio Renato de Mello
  • 21/11/2020
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A LIVRE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO E SUA INALIENABILIDADE

 

A liberdade para manifestação do pensamento é um direito constitucional fundamental do indivíduo; hoje, o mais privado de todos os direitos individuais, o mais existencial, o mais digno. Algo que só é alcançável depois de muito amadurecimento cultural e espiritual, patamar em que ainda estamos longe de chegar numa sociedade polarizada, mesmo vivendo formalmente em um Estado Democrático de Direito e suas liberdades públicas.

Sobre o pensamento enquanto ainda não exteriorizado, apresento alguns vieses jurídico-filosóficos importantes na luta democrática por verdades culturais que se pretendem universalizadas. O meio para se chegar a isso: a expropriação do pensamento individual.

A primeira implicação tem a ver com o comportamento do titular deste direito. Ele não tem que dizer o que pensa. O Estado e particulares não podem exigir a exteriorização do pensar e do sentir alheio.

O pensamento, neste particular, enquanto ainda num estágio de mero repositório espiritual e almático, uma caixa de pandora com segredos íntimos e humanos, com boas ou más intenções que vão desde o dar a vida por outrem até a pedofilia em forma de progresso humanitário, revelador de bons ou maus corações, portanto, é copropriedade ou comunhão de apenas duas pessoas: de Deus e do próprio ser pensante.

Rene Descartes conseguiu separar o pensamento do sujeito pensante com o cogito: "Penso, logo existo". Portanto, o pensamento é condição de existência humana, de dignidade, sendo, portanto, propriedade intelectual bem definida e inegociável.

O pensamento é propriedade individual e é intocável. E já não é de hoje que este bem mais precioso do homem é tido como o maior galardão humanitário que se possa conquistar. Quando milhões de mortes não mais surpreendem ou convencem, já pensava Antonio Gramsci quando preso por Mussolini, o jeito é apelar para o pensamento.

Antes desta constatação, John Locke queria fazer da mente uma tábula rasa, um começar do zero para conquistas empíricas e burguesas, acreditando que o que temos no pensamento veio antes dos sentidos e, portanto, a mente deve ser esvaziada. Aliás, entrando nesta questão bastante pertinente da existência ou não da inatalidade das ideias - já que, a depender dela o sujeito passa ou não a ceder a sua capacidade de pensamento e de crença, disponibilizando um direito que se sabe fora de qualquer negociação - Santo Agostinho já dizia que antes mesmo do espírito e dos sentidos vem a crença. Portanto, para ambos, primeiro creio e depois entendo (crede, ut intelligas). Aliás, esta "dialética" entre fé, razão e sentidos, este campo de tensão entre gigantes muito bem armados, nunca deu muito certo na história. Só constatar que, depois do apogeu do iluminismo, eliminando a fé, e sua derrocada com. a crise da razão, avisada por Kant, que calçou as sandálias da humildade para um uso dela, hoje somos governados quase que exclusivamente por modos de sentir. Um a zero para o coração.

A segunda feição do direito de manifestação do pensamento é a autorização para dizer o que se pensa. Mesmo politicamente incorreto o pensamento, por mais absurdo que ele seja, encontrará um destino inevitável nos domínios românticos da cultura de hoje. Ele será réu no tribunal da inquisição do imaginário já formado e formatado para "grandes conquistas humanas progressistas". Sem qualquer contraditório, já que o debate dialógico estará fulminado já nos seus propósitos e de forma liminar, a verdade alheia será aniquilada. Ou melhor, nem mesmo chegará a usar a vestimenta de defesa, já que, no entendimento cultural predominante, ela não passa de mentira, de conspiração, de outra ideologia, já ultrapassada. Todavia, a quem, em não aceitando estas ideias exteriorizadas, só restará render-se diante da mera possibilidade da existência de um direito constitucional que, se bom ou mau, existe e está aí para quem quer usufruí-lo nos limites normativos.

Neste atual diálogo de surdos, principalmente na arena e tribunal das mídias sociais, cada um exerce o direito de liberdade de pensamento do jeito que bem entende. Faz bem, já que até mesmo o maior absurdo, um dia, dependendo de cada um ceder um espacinho dentro do intelecto, poderá passar a ser verdade. Antonio Gramsci que o diga.