É isso mesmo que você leu. Há quem pense que você, leitor, valha menos (e bem menos) que um cachorro.
Já adianto aos apressados portadores de retóricas fofas e politicamente corretas que a opinião que ora emito não atravessa a importância que se deve dar ao animal - um bem jurídico importante e, por isso mesmo, tutelado individual e coletivamente pelo direito.
A vida animal é corretamente tutelada, e deve ser preservada. Mas será que o mesmo ocorre com a vida humana?
Pois bem.
Na semana que passou, uma manifestação estarreceu muita gente que insiste em manter a sanidade nesse país de delírios diários. Em um documento oficial submetido ao Parlamento brasileiro, uma Procuradora Federal destacada (pasmem) para atuar na área de direitos dos cidadãos, defendeu uma tese que pode ser resumida na seguinte conclusão: "E, se o uso da força legítima é monopólio do Estado, certamente, por razões lógicas, a "autodefesa" não pode ser um direito."
É isso mesmo que você leu. Um ser humano que, diferentemente de um animal, é sujeito de direitos e obrigações, não teria direito à autodefesa legítima diante de uma agressão atual ou iminente, segundo a tese.
Claro que essa assertiva desconsidera totalmente a inteligência do art. 25 do Código Penal. Mas a antijuridicidade da tese "lacradora" não se resume ao enfrentamento legal, e sim a negativa da própria natureza humana que, nos anos 40, jamais seria questionada por pessoas ditas sãs.
A autodefesa não só encerra um direito fundamental como é, de fato, um direito natural. Quero dizer com isso que o direito à autodefesa e autopreservação é inerente à própria natureza animal, da qual o ser humano não pode ser dissociado.
Somos sim animais e políticos, segundo a própria filosofia aristotélica. E negar as nuances naturais que formam um animal seria o mesmo que negar a essência da natureza humana.
Portanto, valores como liberdade, igualdade, busca da felicidade, e muitos outros caros para a política jamais deveriam ser dissociados da essência natural identificada em um ser humano, individual e coletivamente considerado.
Trocando em miúdos, e para ser mais direto ao caro leitor, posso afirmar que negar o instinto de autopreservação e o direito de autodefesa ao ser humano significa, invariavelmente, retirar de todos nós a própria natureza humana.
Para exemplificar, compare a tese em análise com a simples experiência de retirar a tigela de ração de um cachorro enquanto se alimenta. O animal reagirá, em medida suficiente, para afastar o perigo atual e iminente que o cerca, protegendo sua comida. Portanto, na hipótese, negar o instinto de autodefesa seria acreditar piamente que o cão, diante dessa ameaça, não defenderia a sua existência.
O que nos difere do animal irracional, neste aspecto? Será que diante de uma agressão atual ou iminente, não poderá um ser humano valer-se daquilo que é intrínseco a sua natureza, defendendo, por exemplo, a própria vida, a vida de um filho, de um pai, ou mesmo de outro ser humano injustamente ameaçado?
Temos, sim, a atividade intelectual como outro fator inerente a nossa natureza. E por isso mesmo não somos, como os animais, bens jurídicos. Somos diversos. Somos todos seres que, pelo exercício da razão, ostentamos a condição de sujeitos de direitos e deveres. Assim, em nosso caso, tanto o agressor quanto o agredido devem responder, automaticamente, por seus atos diante das obrigações e direitos que lhes são acessíveis pelo exercício da razão.
Não seria demais afirmar, então, que retirar do ser humano o direito de autodefesa legítima significa não só negar-lhe os instintos de autopreservação, como retirar-lhe a condição racional que permite, a cada um de nós, avaliar os atos que devem ser executados para autopreservação, e responder pelas naturais consequências.
Assim, um ser humano vítima de qualquer atentado que ponha em risco sua incolumidade seria despido de defender-se. Conceberíamos, pela absurda proposição, que até mesmo a um bezerro amarrado no ato do sacrifício seria garantido o instinto natural de debater-se em clara reação ao mal iminente.
Mas ao ser humano, não.
Que morra sem ao menos reclamar, e que não cometa a "insanidade" de tentar preservar sua própria vida.
Não me valho da condição de magistrado ou escritor para comentar esta tese. De forma alguma. Que esta reflexão seja tida como um verdadeiro ato de legítima defesa de um ser humano, em franca preservação de sua própria natureza humana.
Por certo, a tese que falha ao deixar de apresentar qualquer lógica jurídica e revela-se pródiga ao lançar elemento claramente ideológico sobre o direito, ao que parece, não extingue ainda um direito que penso ter: o direito de pensar.
*Harley Wanzeller é magistrado federal trabalhista, escritor, e membro do Movimento de Combate à Impunidade. (11.10.2019)
**Publicado originalmente no Estadão.