Percival Puggina.
No livro “Histórias sem data”, Machado de Assis conta que o Diabo, certo dia, resolveu organizar sua atividade e fundar uma igreja. Seus afazeres mereciam ser valorizados por certa pompa, paramentos, novenas, escrituras etc.. Foi ter com o Senhor para notificá-Lo da decisão. Na conversa, o tinhoso dissertou longamente contra as virtudes e a favor dos vícios, atrativos reais com que contava para fazer prosperar sua iniciativa. O ponto alto deu-se quando discorreu sobre as razões da venalidade. Vale a pena transcrever:
“A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender tua casa, o teu boi, o teu sapato, teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas que em todo caso estão fora de ti, como é que não podes vender tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são tua própria consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no absurdo e no contraditório. Pois não há mulheres que vendem os cabelos? Não pode, um homem, vender uma parte de seu sangue a um outro homem anêmico? E o sangue e os cabelos, partes físicas, terão um privilégio que se nega ao caráter, à porção moral do homem?”
A conversa segue, abrindo o ventre e eviscerando a miserável falta de escrúpulos com que operam certas instituições nacionais. E não me peçam para dar nomes e sobrenomes aos bois desse cercado porque eu gosto de dormir na minha casa, na minha cama, com minha mulher. Vejam pois, amigos leitores, a impiedosa sina: umas poucas páginas do bom e velho Machado, com quem quis buscar refúgio e proveito estético, me arrastaram de volta ao amado Brasil cuja realidade me traz dor ao peito.
Machado de Assis cortou fundo. Com razão não ficou apenas no dinheiro mal havido, mas quase invadiu o território misterioso das criptomoedas, descortinando as múltiplas moedas da venalidade. “Nem só de pão vive o homem”, disse Moisés e repetiu Jesus. E nem só de dinheiro vive a corrupção.
É assim que eleitores e políticos vendem votos. É assim que muitos deputados trocam convicções morais pelo sorriso afável dos corruptos que se resguardam com leis de autoproteção. E é assim que tantos rasgam compromissos de campanha e se desdobram em agrados ao poder togado do outro lado da praça.
É assim que ministros do STF fazem o mesmo jogo internamente e, para bem servi-lo, rasgam o que escreveram em seus livros, ou desdizem o que tantas vezes repetiram antes, com floreios de saber jurídico e certeza moral. A Constituição é, assim, enviada às urtigas. É assim que se serve a Corte e se desserve a sociedade, prendendo quem ataca a instituição e soltando bandidos socialmente perigosos. É assim que consciências cedem à gratidão e a gratidão se impõe ao dever moral de declarar a própria suspeição.
É assim que a opinião vai ao mercado em busca do melhor preço ou do maior número de cliques. É assim que, para tantos, a fé erguida à condição de sacramento da Ordem se corrompe e se torna utilidade política, o sermão vira discurso e o discurso torna “a casa dividida contra si mesma”. E servem a dois senhores.
Em seu devaneio criativo, Machado de Assis foi apocalíptico.
Percival Puggina (76), membro da Academia Rio-Grandense de Letras e Cidadão de Porto Alegre, é arquiteto, empresário, escritor e titular do site Conservadores e Liberais (Puggina.org); colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil pelos maus brasileiros. Membro da ADCE. Integrante do grupo Pensar+.
Lindolpho Cademartori - 11/04/2021 13:26:51
Excelente texto, caro Percival! Forte abraço.ALCEBIADES DA SILVA SANTOS FEITAL - 09/04/2021 03:50:12
As obras de Machado de Assis são de incrível atualidade ! São fantásticas!Carlos Edison Fernandes Domingues - 08/04/2021 11:58:33
PUGGINA Pelo que já tive a oportunidade de ler e a esperança que tenho de continuar a me aperfeiçoar, com as mensagens que nos envia, não lembro nada melhor e tão bem dissecado, neste artigo, a respeito deste "câncer" na liderança política e financeira, que destrói o corpo social do Brasil. Carlos Edison DominguesHeloisa - 07/04/2021 21:39:50
Texto muitíssimo bem escrito, Sr. Puggina, para surpresa de ninguém, devo dizer. Há tempos li a entrevista de um inglês que disse o seguinte:”a política não é uma área onde se deva procurar a virtude”.Lenine Marcato - 07/04/2021 14:19:02
Excelente reflexão Prof. PercivalElvio Rabenschlag - 06/04/2021 20:28:57
Belíssimo texto jornalista Percival Puggina. Nos tempos em que vivemos já é difícil saber o que é virtude e o que é pecado. Tudo se torna um jogo de palavras.Rogerio Viana - 06/04/2021 18:57:11
Perfeito! Parabéns, professor!!Menelau Santos - 06/04/2021 16:44:38
Fantástico o texto Professor. Gostei da alusão ao nosso STF mutante. Lembrei-me também daquela frase do Groucho: "meus princípios são esses, mas se você não gostar, tenho outros". O Sr. Aras, para conseguir uma vaga no STF, está disposto até a defender a abertura dos cultos religiosos. Quanto sacrifício!Tânia Maria Muller Barin - 06/04/2021 16:38:41
E foi assim que venderam até a alma... No fim, sobrou apenas uma massa disforme.