• Percival Puggina
  • 29/04/2015
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UMA SOCIEDADE MORALMENTE SEDENTÁRIA

 


          Li “O homem medíocre” pela primeira vez em 1999. Na época, o cetro do poder político brasileiro estava em outras mãos e a oposição de então apresentava-se como modelo das mais seráficas virtudes. Um capítulo do livro, em especial, chamou-me a atenção por parecer escrito para aquela realidade. O autor, José Ingenieros, tratava, ali, da diferença entre a mera honestidade e a virtude, bem como da falsa honestidade daqueles que a exibem como troféu. “Em todos os tempos, a ditadura dos medíocres é inimiga do homem virtuoso. Prefere o honesto e o exibe como exemplo. Mas há nisso um erro ou mentira que cabe apontar. Honestidade não é virtude, ainda que não seja vício. A virtude se eleva sobre a moral corrente, implica uma certa aristocracia do coração, própria do talento moral. O virtuoso se empenha em busca da perfeição.”

          Com efeito, não fazer o mal é bem menos do que fazer todo o bem que se possa. Ser e proclamar-se honesto para consumo externo é moldar-se às expectativas da massa e isso fica muito aquém da verdadeira virtude. “Não há diferença entre o covarde que modera suas ações por medo do castigo e o cobiçoso que age em busca da recompensa“, afirma o filósofo portenho enquanto sentencia sobre o homem medíocre: “Ele teme a opinião pública porque ela é a medida de todas as coisas, senhora de seus atos“. Temia, filósofo Ingenieros, temia. O medíocre não mais teme a opinião pública porque a nação tolerou prostituir-se em troca de umas poucas moedas.

          Não demorou muito, daquela minha leitura, para que as palavras de Ingenieros desnudassem a intimidade do novo círculo de poder que se instalara no país! Presentemente, após 12 anos disso, sempre em dose crescente, estou convencido, como nunca, de que jamais enfrentaremos de modo correto a degradação das práticas políticas brasileiras se não compreendermos o que é a virtude e como ela se expressa no plano pessoal e no plano institucional.

          Há alguns anos, quando se discutia com disposição semelhante à de agora a conveniência e o conteúdo de uma reforma política, instalou-se na opinião pública ampla convergência quanto à indispensabilidade de ser criado preceito que impusesse a fidelidade partidária. “É preciso estabelecer a fidelidade partidária!”, clamavam as vozes nas calçadas, em torno das mesas de bar, nas academias e nos salões do poder. Cansei de alertar, em sucessivos artigos, contra a falsa esperança que a nação depositava nesse instrumento de coerção. Tudo que se lia sobre o assunto passava a impressão de que a infidelidade partidária sintetizava nossos males políticos e era o coração ético de uma boa reforma. Por quê? Nunca entendi. Há coisas que se repetem sem explicação plausível.

          Decorridos, já, sete anos de vigência do instituto da fidelidade partidária está demonstrado que ela em nada melhorou o padrão das relações institucionais entre o governo e o parlamento, nem a conduta dos agentes políticos nacionais.

          É preciso distinguir, portanto, a virtude que se alcança por adesão voluntária a um determinado bem, da virtude intrínseca a modelos institucionais que inibem a conduta não virtuosa. A fidelidade será, sempre, um produto da vontade humana. O pérfido só renunciará a perfídia quando ela se mostrar inconveniente. O venal pode trocar de camiseta, mas só não terá preço se não houver negócio a ser feito. É por esse motivo que quando o STF proclamou a constitucionalidade da Lei da Ficha Lima, eu escrevi que estávamos trocando de fichas, ou de fraldas como diriam alguns, mas não estávamos acabando com a sujeira que, logo iria encardir outras tantas.

          Por quê? Porque essa lei parece desconhecer que a corrupção tem causas em duas fragilidades, a da moralidade individual e a institucional. No plano das individualidades, só teremos pessoas virtuosas em maior número quando forem enfrentadas certas questões mais amplas, na ordem social. Ou seja, quando:

• a virtude for socialmente reconhecida como um bem a ser buscado;
• escolas e universidades retomarem o espírito que lhes deu origem e levarem a sério sua missão de formação e informação e não cooptação;
• famílias e meios de comunicação compreenderem a relação existente entre o desvario das condutas instalado na vida pública e o estrago que vêm produzindo na formação da consciência moral e na vida privada dos indivíduos;
• o Estado deixar de ser fonte de privilégios;
• for vedada a filiação partidária dos servidores públicos;
• forem extintos os CCs na administração direta, indireta e Estatais;
• a sociedade observar com a atenção devida o método formativo e educacional das corporações militares;
• voltar a ser cultivado o amor à Pátria;
• a noção ideológica de “la pátria grande” for banida por inspirar alta traição;
• as Igrejas voltarem a reconhecer que sua missão salvadora nada tem a ver com sociedade do bem estar social, mas com sociedade comprometida com os valores que levam ao supremo Bem.
          Não há virtude onde não há uma robusta adesão da vontade ao Bem. E isso não acontece por acaso. É uma busca que exige grande empenho.

          Contudo, a democracia (governo de todos), não é necessariamente aristocracia (governo dos melhores). E será sempre tão sensível à demagogia quanto a aristocracia é sensível à oligarquia. Portanto, numa ordem democrática, como tanto a desejamos, é necessário estabelecer instituições que, na melhor hipótese, induzam os agentes políticos a comportamentos virtuosos ou, com expectativas mais modestas, inibam as condutas viciosas. Ora, o modelo político brasileiro parece ter sido costurado para compor guarda-roupa de cabaré. Não há como frear a corrupção que se nutre num modelo institucional que a favorece tão eficientemente, seja na ponta das oportunidades, seja na ponta da impunidade, vale dizer, pela via das causas e pela via das consequências. Não estou falando de leis que a combatam, mas de um modelo político que a desestimule.

          Como? Adotando procedimentos e preceitos comuns nas Forças Armadas. Libertando a administração pública dos arreios partidários, por exemplo. Ao entregar para o aparelhamento partidário a imensa máquina da administração (que a mais elementar prudência aconselharia afastar das ambições eleitorais), o Brasil amarra cachorro com linguiça e dá operosidades e dimensões de serraria industrial ao velho e solitário “toco”. “É politicamente inviável fazer isso no Brasil”, estará pensando o leitor destas linhas em coro com a grande maioria dos que, entre nós, exercitam poder político. Eu sei, eu sei. Não sou ingênuo. Está tudo errado, mas não se mexe. As coisas são assim, por aqui.

          Do mesmo modo como a fusão do Governo (necessariamente partidário e transitório) com a Administração (necessariamente técnica e neutra porque permanente no tempo) cria problemas e distorções de conduta, a fusão do Governo com o Estado (que, por ser de todos, não pode ter partido) faz coisa ainda pior no plano da política interna e externa. Desde a proclamação da República, todo governante trata de aparelhar o Estado e exercer influência sobre suas estruturas.

          Por fim, quero lembrar que o relativismo moral veio para acabar com a moral. O novo totalitarismo elegeu como adversário os valores do Ocidente. Multidões, sem o perceber, tornaram-se moralmente sedentárias.

Abandonaram os exercícios que moldam a consciência e fortalecem a vontade. Ao fim e ao cabo, em vez de uma sociedade onde os indivíduos orientam suas vidas segundo os conceitos que têm, constituímos uma sociedade onde os indivíduos conformam seus princípios e seus valores à vida que levam.

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* Percival Puggina é membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do sitewww.puggina.org, colunista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país, autor de Crônicas contra o totalitarismo;Cuba, a tragédia da utopia e Pombas e Gaviões, integrante do grupo Pensar+.

 


Luiz Fernando Martau -   04/05/2015 13:01:25

Puggina: - Meu orgulho em ser teu amigo aumenta mais a cada dia que leio teus textos !!!

Sérgio Alcântara, Canguçu - RS -   01/05/2015 13:08:33

Texto amplo, com profundidade no conteúdo e, ainda assim, acessível ao intelecto de qualquer cidadão medianamente instruído, que esteja minimamente aberto a ideias fora do eixo do TAPA-OLHO ideológico do marxismo. É por causa disto que o trabalho de pensadores como o senhor, Professor Puggina, tem sido tão importante neste inesperado e auspicioso despertar da consciência patriótica em uma parcela muito significativa do povo brasileiro. Eu só diria que este, a princípio, RELATIVISMO moral, disseminado entre as cabeças "pensantes" em nosso país , abriu caminho foi para o ABSOLUTISMO político-cultural e político-intelectual que sacralizou o CULTO À AMORALIDADE e, por que não dizer, à IMORALIDADE, como ferramenta indissociável da busca da tão almejada "igualdade" social.

Leonardo Melanino -   01/05/2015 00:23:47

Senhor PERCIVAL PUGGINA, avisá-lo-ei que a primeira Constituição republicana chama-se "CREUB de 1891". Um dos fundadores dela foi Rui Barbosa. Também o avisarei que um dos fundadores da CRFB de 1988 foi Ulisses Guimarães. Direitos humanos verdadeiros são Agriculturas, Assistências, Cidadanias, Culturas, Desenvolvimentos, Educações, Empregos ou Trabalhos (exceto escravos ou infantis), Energias e Minas, Esportes, Justiças, Liberdades Constitucionais, Meios Ambientes, Nacionalismos ou Patriotismos, Previdências, Relações Exteriores, Saúdes, Seguranças, Transportes, Vidas e outros. Contudo, jamais temos direitos de cometer crimes ou violar direitos humanos. Constituições Federais são cartas de princípios que regem uma sociedade (povo) duma nação. Contudo, certos direitos humanos são exclusivos para maiores de 18 anos, como cargos, empregos, funções ou trabalhos, mesmo nos campos artísticos, esportivos ou políticos, conduções de veículos automotores, incluindo bicicletas elétricas e outros ciclomotores, circulações pelas ruas e por outros lugares, desacompanhados de seus pais ou de seus responsáveis entre as 19h a as 6h do dia seguinte (nos Horários de Verão, das 18h às 5h do dia seguinte), contas bancárias e outras, himeneus, namoros ou noivados, modalidades adultas (automobilismos, esgrimas, motovelocidades, paraquedismos e outras), votos e assim sucessivamente. Por isso, não deixemos de lutar pelos nossos direitos humanos verdadeiros, enquanto estivermos vivos, sendo cidadãos brasileiros. Agradeço-lhe de todo o meu coração! Obrigado!

Ricardo Moriya Soares -   30/04/2015 20:42:54

Magnífico texto! Arriscaria dizer sem receios que se tivéssemos uns 20 clones seus (Percival Puggina), o Brasil não estaria navegando por estes mares vermelhos e tempestuosos. Parabéns pelo texto, mestre!

Deborah Ribeiro -   30/04/2015 17:59:55

Caro Dr. Puggina, venho somar-me a tantos outros que admiram a sua pessoa e o seu incansável trabalho de trazer à luz tantas verdades. Declaro-me sua fã.

léo guedes -   30/04/2015 17:00:58

Fui o orador da minha turma de formando no ginásio e meu discurso, produzido por uma professora e vizinha, foi calcado no livro de José Ingenieros, O Homem Medíocre, em trechos que, passados mais de cinquenta e tantos anos ainda me lembro de algumas frases. O que fez de seu belo texto motivo duplo para lê-lo. " O ideal é um ponto e um momento entre os infinitos que povoam o espaço e o tempo. Estimule-o, pois, se sua chama morrer, fria bazófia humana será o ente e o homem, fatalmente, cairá na mediocridade." Esse é um dos trechos que me ocorre. O tempora! O mores! Penso que é um desafio ao homem quando o céu da existência se escurece e se busca alguma luz para que não saia do caminho. Mário Ferreira dos Santos escreveu um livro, se não me engano, Cristianismo, a religião dos homens, onde coloca como meta pessoal a busca do aperfeiçoamento. E em seu texto se exalta como um ato humano natural essa busca, não pelos valores culturais, pelo modismo, mas pela própria razão existencial. E como estamos longe disso, ou, como ficamos longe disso. Mas as crises, sejam de que natureza forem, inevitavelmente, colocam o homem diante do sofrimento, da dor, e esta, como se sabe, ensina a gemer. O destino da humanidade se assemelha ao curso dos rios de planície. São tortuosos e muitas vezes se voltam próximos dos lugares já percorridos, mas sua trajetória é inequívoca, terá de terminar no mar. Grande abraço e continue a nos inspirar com seu talento.

marco antônio de carvalho rezende -   30/04/2015 14:38:19

Um livro que pode ser interpretado tanto para o bem quanto para o mal: http://antonio-ozai.blogspot.com.br/2007/09/o-homem-medocre.html

Antônio Pereira Júnior -   30/04/2015 14:37:31

Prezado Professor, acebei lê-lo no Mídia Sem Máscara e tive que vir in continenti para congratulá-lo. Seus artigos estão se superando: uma verdadeira lição de correição e austeridade. Fiquei tão ansioso pra ler "O Homem Medíocre" que nesse momento estou no Estante Virtual adquirindo-o. Tenho certeza que será mais um tijolo na construção de minha hombridade. Obrigado por compartilhar conosco seus pensamentos e suas experiências.

Percival Puggina -   29/04/2015 23:54:50

Quanto me orgulha a qualidade dos meus leitores!

André Godoy -   29/04/2015 22:48:07

Também li O Homem Medíocre e a ideia do homem virtuoso, como meta a ser alcançada, ficou muito marcada na minha visão sobre nossa sociedade. Parabéns pela análise e pelo texto.

Ismael de Oliveira Façanha -   29/04/2015 21:40:50

"Parfait"; os dois Plínios, o Corrêa e o Salgado, se vivos fossem, aplaudiriam seu artigo, que alcança a ser um manifesto útil a esse inculto, e por isso mesmo infeliz, povo brasileiro, e aí incluo os "deformadores" de opinião, os políticos, certas nulidades episcopais etc.

Odilon Rocha -   29/04/2015 19:32:21

Prezado e caro Professor PUGGINA As suas linhas foram claras como a água mais pura. Folgo em saber que " O homem medíocre" também faz parte minha humilde biblioteca. O que me deixou feliz. Ontem à noite, ainda sem ter lido algumas notícias, quando li a exposição de motivos do Zavascki - nome que cabe bem como cão de guarda da KGB - , pura retórica em linguagem legal, totalmente sofismática, mentirosa, e "peguenta", para tentar justificar o injustificável, desanimei. Creio que o recado (dele) foi dado: "nós mandamos e quem não gostar que se mude. E pronto!" Óbvio que isso teve o dedo de alguém ou 'alguéns'. Nunca acreditei no 63% de rejeição, veiculado às escancaras. Número mediano, criativo, escorregadio, para enganar bestas. A rejeição é muito maior e todo mundo sabe disso. Mas ainda assim, parece que não tem jeito. Nem faz cócegas. Nunca acreditei que o Foro de SP tivesse tanto poder assim para nos constranger e nos levar aonde querem. Encontros, atas e discussões sozinhos, por sí só, não fazem nada! Há algo maior que isso. É pura lógica: diante de uma lista quilométrica de ilícitos, desvios, denúncias, falcatruas, fatos, tudo sempre chocante!, e não só Patrobrás, não!, como é possível um governo desses estar de pé e rindo da nossa cara? Creio que o nosso quadro, pelo adiantar da hora, não é mais reversível. Torço, até mesmo rezo, para estar enganado Uma coisa engraçada, soando até como macabra, é que todos, não sei se se deram conta, vão, mais cedo ou mais tarde, morrer. Parece que não pensam nisso. Nem sei se estão preparados para tanto. Abraço

GUILHERME CÉ -   29/04/2015 17:45:41

Puggina, Se me permite, divulgo, para quem interessar, link do blog em homenagem ao grande liberal Roberto Campos. http://alanternanapopa.blogspot.com.br/

Gustavo Pereira dos Santos -   29/04/2015 17:29:11

Dr. Percival, Pior que a roubalheira e a incompetências petistas é a decadência moral do povo brasileiro, onde, latu sensu, o politicamente correto é o top das virtudes. A ausência de virtuosismo num povo elimina sua capacidade de reação aos problemas. Nesse particular, nós não estamos sedentários ou acomodados, fomos anestesiados. Méritos para o Sr. Gramsci, cuja doutrina nos empurrou goela a baixo líderes like um APEDEUTA BÊBADO e uma ANTA. But, não tá morto quem peleia, ainda temos o senhor como lider. Um abraço, Gustavo.

Genaro Faria -   29/04/2015 15:36:12

No excelente ensaio A Civilização do Espetáculo, Mário Vargas Llosa mostra como a alta cultura e a ética vêm se desfigurando a partir de uma generosa, porém equivocada concepção antropológica que promoveu as manifestações culturais mais primitivas à mesma distinção dos mais elevados padrões da civilização. Começara ali, segundo o autor, a desconstrução dos valores que produziria a chamada "sociedade pós-moderna". Hoje se despreza, de um modo atroz, a advertência bíblica sobre a condição humana - Comerás o pão com o suor do teu rosto. Não há mérito no estudo dedicado, no trabalho prestado com dignidade e assiduidade, na obediência aos mestres familiares, escolares e no respeito à hierarquia, enfim, nada mais do "tudo que aí está", como dizem os revolucionários, que possa se ombrear com o supremo bem que é o entretenimento. Até a saúde curvou-se diante das drogas para louvar a primazia do prazer a ser obtido a qualquer preço. A cigarra vinga-se da formiga neste reino dos pródigos. O que poucos, infelizmente pouquíssimos percebem é que o mal triunfa pela mercê de poderosíssimos interesses econômicos e políticos, ocultos sob o manto dessa delirante fantasia hedonista que eles induziram. Estudantes que não estudam, trabalhadores que não trabalham e intelectuais de um livro só, se tanto, adubam o terreno social desta safra da contracultura para realizar os propósitos da hegemonia política e da plutocracia econômica de uma sinistra e satânica elite dominante ideológica e argentária. Os chineses estão chegando...