UMA INEXPLICÁVEL RENÚNCIA
Twitter: @percivalpuggina
Em fins do ano passado, a Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, cumprindo o preceito constitucional que determina a revisão dos subsídios parlamentares de uma legislatura para a subsequente, corrigiu para R$ 20 mil o contracheque dos deputados. O montante é bem inferior ao teto do funcionalismo público (cerca de R$ 24 mil), corresponde a 80% do que é pago aos desembargadores do Tribunal de Justiça do Estado e representa 75% dos subsídios recebidos pelos deputados federais.
Só a atávica repulsa do brasileiro pela política explica a gritaria e os protestos que se seguiram. Paradoxalmente, nenhum pio é jamais ouvido em protesto contra os valores pagos aos desembargadores, por exemplo, que são em muito maior número, que têm a prerrogativa da vitaliciedade e a partir de cujos subsídios se organizam os pequenos degraus de todas as carreiras jurídicas do Estado. São centenas e centenas de membros. Por que ninguém protesta? Porque são vencimentos dignos, compatíveis com as responsabilidades da função, ora essa! E por que se considera abusivo, então, que meia centena de deputados estaduais, com mandato de quatro anos, receba subsídio igual a 80% do que ganham os desembargadores, visto que são autoridades equivalentes na hierarquia dos poderes do Estado? Essa pergunta não encontra resposta sensata.
Pois bem, na onda demagógica de malhar o Legislativo, entre pitos e flautas - pitos de cronistas políticos e flautas de humoristas - um rapeiro decidiu fazer um rap de protesto, que recebeu o título de Gangue da Matriz. A letra - digamos assim na falta de palavra melhor - recita os nomes de 36 deputados que votaram favoravelmente ao aumento e os associa a uma gangue de criminosos que há muitos anos atuou na região da Praça da Matriz, junto à qual se situa o parlamento gaúcho. Claramente um texto ofensivo. E discriminatório: omite o fato de que os deputados que se puseram contra o aumento no dia em que foi votado, e se reelegeram para a atual legislatura, o estão considerando muito bem-vindo na hora de botar no bolso.
Enfim, diante da agressão, o presidente da Assembléia Legislativa solicitou ao Ministério Público a interposição de queixa-crime contra o compositor. Era de se ver os protestos de toda parte. Censura! Escândalo! Querem coibir a liberdade de expressão! E imediatamente os ofendidos, a partir do próprio ex-presidente, signatário da manifestação ao Ministério Público, engataram marcha-ré e recusaram dar continuidade à ação.
Se os leitores deste artigo fizerem uma pesquisa de opinião, verão que apenas um em cada cem gaúchos concordará com o que estou escrevendo, mas tenho certeza de que todos os 99 ficariam indignados e tomariam providências judiciais se algum rapeiro pegasse no pé deles e os expusesse como criminosos perante a opinião pública.
Não faz parte das minhas convicções democráticas o direito ao abuso da liberdade. Se e quando alguém me ofender, exercerei o direito de buscar tutela jurisdicional. Mas se o autor da agressão for um artista, aí eu não posso agir? Ofensa cantada vira arte? E agir contra ela é censura? Existe imunidade de opinião artística? Ou será que só pode haver agressão artística se o alvo for um político porque ele tem obrigação de levar desaforo para casa? Pelo que tenho lido e ouvido, só a mim isso parece cerceamento de direitos e abuso. Não entendo. Ou melhor, entendo e não gosto do que percebo. O brasileiro quer democracia sem política e sem políticos.
Por isso, escrevo. Pode ser que em função do que exponho aqui, alguém pare um pouco para pensar sobre a velha e sempre atual questão dos valores e dos limites. Há certas coisas que não se faz, seja como cidadão, político, parlamentar ou artista. O recuo dos deputados no pedido de providências encaminhado ao Ministério Público é um desserviço ao Estado de Direito e a eles próprios como jurisdicionados que abdicam de defender a própria honra no lugar certo - o Poder Judiciário.
* Artigo publicado originalmente na Revista Voto, edição de setembro/2011
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* Percival Puggina (66) é arquiteto, empresário, escritor, titular do site www.puggina.org, articulista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país, autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia e Pombas e Gaviões.