• Percival Puggina
  • 12/03/2024
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Se a Lava Jato não sobreviver em nós...

 

Percival Puggina

         Na noite do domingo 10 de março, enquanto as nuvens do sono não chegavam, meus pensamentos mergulhavam nas trevas do Brasil. Por associação de ideias, lembrei-me do cubano Huber Matos e de seu livro “Como chegou a noite” (Como llego la noche). Em palavras do próprio Fidel, Matos era o segundo nome entre os comandantes da revolução, vindo logo após o irmão Raúl, com precedência sobre Che Guevara. Mesmo assim, por escrever a Fidel uma carta reprovando sua adesão ao comunismo, foi condenado a 20 anos de prisão por crime de traição e teve de cumpri-los integralmente. Duas décadas no infame cárcere cubano por uma carta pessoal ao “amigo” Fidel! É bem próprio dos autoritarismos e totalitarismos, punir exemplarmente e exibir a musculatura de seus poderes.

Decidi escrever um artigo com as razões da ideia que dá título a este texto e me perdi nas nuvens do sono. Ao acordar, ainda deitado, coincidência ou não – vá saber! – deparei-me, na Gazeta do Povo (11/03), com o artigo “Dez anos da Lava Jato” escrito por Sérgio Moro. Dele, extraio alguns dados que informarão este texto.

Antes daquela notável operação, a sociedade brasileira teve que curar as feridas de sua decepção com a Ação Penal 470, que chegou ao plenário sete anos depois de estourar o escândalo. E só foi julgada graças à teimosa persistência do relator, ministro Joaquim Barbosa. Ainda assim, “maiorias de circunstância”, como ele mesmo denunciou, fizeram com que nenhum político condenado permanecesse recluso. A face podre do Brasil seguiu em frente.

A Lava Jato, pouco depois, proporcionou à nação novo período curtindo a esperança de um renascimento moral. Do artigo de Moro recolho a seguinte síntese sobre os êxitos da Lava Jato:

Os números variam, mas, considerando apenas a Lava Jato em Curitiba, houve 174 condenados em julgamentos de primeira e segunda instância, 132 prisões preventivas, 209 acordos de colaboração e 17 acordos de leniência com empresas. A Petrobras, em notas oficiais, confirmou que recuperou mais de R$ 6 bilhões graças à Lava Jato.

Noutra parte do artigo, Moro acrescenta que “as condenações de Curitiba foram, em sua quase totalidade, confirmadas pelo TRF4 em Porto Alegre (RS) e muitas ainda em Brasília, pelo STJ, isso antes do início da sanha anulatória por tecnicalidades.

Tais sucessos seriam muito menores se não estivesse em vigor a possibilidade de prisão após condenação por segunda instância. A torrente de confissões, delações e acordos que se seguiu foi desencadeada pela perspectiva de cadeia em curto prazo. Os autores conheciam bem os rentáveis crimes que haviam cometido. A Lava Jato e as condenações de Curitiba, no entanto, indignavam e causavam inconformidades no plenário do Supremo.

Ah, leitor amigo! Quando penso no tratamento dispensado aos certos “réus perante o Supremo”, em especial aos incógnitos plebeus presos em 8 de janeiro, pergunto a mim mesmo onde foram parar a compaixão e o zelo humanitário e processual devotados aos nobres bilionários investigados pela Lava Jato...

“Love is in the air”, diz conhecida canção de John Paul Young. Como o amor, a motivação para a “Meia volta, volver!” de Curitiba estava no ar desde o dia 7 de novembro de 2019. Em recente declaração, interrogado sobre o voto decisivo que deu, mudando de posição sobre a possibilidade de prisão após condenação em segunda instância, o ministro Gilmar Mendes, para espanto geral dos ingênuos, admitiu:

Com a configuração de todo o quadro, acabei fazendo uma leitura política e anunciei, na Turma, que não seguiria mais a jurisprudência e mudaria de posição quando o caso fosse levado ao plenário.

O resultado dessa específica leitura política foi o fim do caminho de ida e o início do caminho de retorno. Como se o sertão virasse mar e o mar virasse sertão, abriram-se os portões dos presídios, Lula foi para casa, a Lava Jato para o congelador, trabalho de hacker virou peça de acusação, o juiz foi declarado suspeito, o líder da força-tarefa perdeu o mandato de deputado federal, o maior escândalo de corrupção da história não tem mais nenhum culpado e o Brasil tem os corruptos mais inocentes do mundo. Como proclamou a Globo, nada devem à Justiça!

As consequências são conhecidas, inclusive para quem ouse dizer o que pensa. A despeito disso, no contexto das afirmações viáveis, ela não morreu na minha memória pelo valor que atribuo ao seu trabalho, pela leitura que faço daquele período e pelos discursos que ouvi em seu prolongado funeral. Na História e na memória onde retenho aquelas emoções, eu encontro a força necessária para dizer, lembrando o título deste artigo: se a Lava Jato não sobreviver em nós, todos morreremos um pouco como cidadãos brasileiros.

Percival Puggina (79) é arquiteto, empresário, escritor, titular do site Liberais e Conservadores (www.puggina.org), colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+. Membro da Academia Rio-Grandense de Letras.

 

 


Menelau Santos -   13/03/2024 16:34:45

Prezado Professor, Permita transcrever: “O resultado dessa específica leitura política foi o fim do caminho de ida e o início do caminho de retorno. Como se o sertão virasse mar e o mar virasse sertão, abriram-se os portões dos presídios, Lula foi para casa, a Lava Jato para o congelador, trabalho de hacker virou peça de acusação, o juiz foi declarado suspeito, o líder da força-tarefa perdeu o mandato de deputado federal, o maior escândalo de corrupção da história não tem mais nenhum culpado e o Brasil tem os corruptos mais inocentes do mundo. Como proclamou a Globo, nada devem à Justiça!” Para mim é a síntese perfeita do desastre nacional dos últimos anos no Brasil. Ao ler esse brilhante parágrafo, lembro-me de um episódio da clássica série “Além da Imaginação”, “O homem Uivante”. Quem sabe, o Sr. assistiu. Relata um homem preso num mosteiro que uiva incessantemente para que o libertem. Um outro homem é acolhido em meio à tempestade pelos monges, mas este não desconfia quem é de fato o homem preso que uiva. Desobedecendo o chefe do mosteiro, o visitante liberta o homem uivante no meio da noite. O homem libertado é o próprio LÚCIFER, que no momento mesmo da libertação, já ataca seu libertador. O visitante pede perdão para o chefe do mosteiro pela desastrosa ação, mas nada mais pode ser feito. O mundo agora passará por terríveis atribulações uma vez que o ENCARDIDO está solto. Levará muitos anos até o prendermos de novo, lamenta o monge. Pois é, o término da lava-jato libertou muitos demônios que agora perseguem muitos anjos. Vamos ver quanto tempo durará nosso sofrimento.

Luiz R. Vilela -   12/03/2024 18:59:57

Quando o escrivão da frota de Cabral, Pero Vaz de Caminha, escreveu ao Rei de Portugal, a famosa carta que anunciava o "achamento" das terras que depois formariam o Brasil, dizem que no meio da "missiva", o seu autor solicitava ao Rei Dom Manuel, que desse uma "maneirada" na condenação de um cunhado seu, que por se envolver em coisas nebulosas em Portugal, estava degredado na África. Dizem ser esta carta o primeiro documento escrito sobre o Brasil, e em seu bojo já trás a marca do "compadrio" e do favorecimento indevido, ou seja, o tráfico de influencia. Desde então, as leis e determinações passaram a ter peso relativos, dependendo de quem deveria ser o apenado. Hoje, joga-se tudo na política, onde os interesses escusos sobrevém ao texto legal, onde a legislação é revogada momentaneamente, para não atingir algum figurão pego em ilicitudes. A lei "interpretativa" dá justamente o poder de quem a interpreta mudar radicalmente o seu sentido. Foi o que aconteceu com a lava jato. Criaram-se heresias jurídicas para livrar certos figurões atolados até o pescoço na lama, certos de que contra estas anomalias, não havia a quem recorrer. Agora a esperança é na justiça divina, que para quem acredita, é a verdadeira última instância, mas que para isso é preciso esperar pela morte. A desesperança é a realidade, e a certeza de ter que conviver com este estado de coisas, é desesperador.