• Percival Puggina
  • 21/09/2023
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O que seria o Brasil?

 

Percival Puggina

 

      Tenho lembrado, com renovada admiração, dos imigrantes alemães e italianos que vieram para o Rio Grande do Sul. Os primeiros, a partir de 1824, se instalaram às margens do Rio dos Sinos, que Viana Moog viria a denominar de “rio que imita o Reno”. Os segundos, em 1875 ocuparam a Serra Gaúcha na região chamada “Campos dos Bugres”, hoje a pujante Caxias do Sul com quase meio milhão de habitantes. Uns e outros, graças à sua cultura de trabalho e seus valores, deram origem às mais prósperas regiões do meu estado. Qual seria nossa realidade hoje se, por ordem imperial, em algum momento, todos tivessem sido obrigados a entregar suas terras à inatividade dos nativos?

***

Decorreram 14 anos desde certo fim de jornada do dia 19 de março de 2009. O STF encerrara longa deliberação sobre a Petição 3388. Ali, como diria Marx, o que era sólido desmanchava no ar. O que por muito tempo fora deixava de ser. As terras da Reserva Raposa Serra do Sol se tornavam contínuas. E ponto final.

Bem longe dos olhos e do coração, no norte do país, cidadãos brasileiros recebiam, viva voz e viva imagem, a notícia de sua expulsão imediata, emitida entre bocejos pelos senhores da Corte. Ao lixo os títulos de propriedade legítimos e os longos anos de árduo trabalho familiar naquele chão. Ao lixo suas lavouras plantadas e seus rebanhos no pasto. Ao lixo a brilhante aula de Historiologia e de Direito ministrada no voto do ministro Marco Aurélio a seus desatentos discípulos. Ponham-se na rua, todos, com suas famílias, moradias, máquinas e bens! A Corte decidira e, visivelmente, estava cansada.

Trabalho árduo, o da Corte! Moleza é plantar arroz no trópico e discutir historiologia e sociologia com militantes saturados de ideologia ou com padres que não evangelizam índios e que desevangelizam não-índios. Com essas duas categorias – índios e não-índios – se travara, ali, a luta de classes tropical!

Quando as luzes estavam por apagar, ocorreu a alguém indagar sobre a execução da ordem. Qual o prazo? Quando deveria ocorrer o êxodo dos não-índios? Enquanto advogados se comprimiam em torno da tribuna, a resposta veio consensual: a Corte não dava prazos; emitia ordens para execução imediata. Essas questões da arraia miúda causam fadiga às Cortes. Vamos para casa, pessoal! E os capinhas recuaram cadeiras para saída dos ministros.

Ao longo daquelas horas, eu senti o Brasil deixando de ser uma só nação e um só povo para se tornar um amontoado cujas questões essenciais estavam entregues a viventes de uma realidade paralela, com um conjunto de narrativas pré-fabricadas, tamanho único. O Brasil, como tal, não se alinhava entre suas preocupações. A decisão foi um desastre para os índios, que, hoje, passam fome sobre uma área que supera a de vários estados da Região Nordeste, e para os não-índios que perderam seu chão.

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Agora, manhã de 21 de setembro de 2023, leio que o “STF está formando maioria”, já em 5 x 2, para derrubar o marco temporal referido à data da promulgação da Constituição, antevendo-se a goleada pela qual a esquerda anseia. É inimaginável a sequência de litígios determinada por uma simples mudança, não na Constituição, mas na sua interpretação segundo o bem querer ideológico dos senhores ministros. Diz a Carta de 1988:

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

Parece tão claro, não é mesmo? As expressões “são reconhecidos” e “tradicionalmente ocupam” não admitem leitura fora do tempo presente. É forçar a barra entender desse artigo algo como “Serão reconhecidos” e “tradicionalmente ocupavam”. A simples noção da amplitude que isso adquirirá espanta toda sua admissibilidade.

A atual composição do STF tem procedência conhecida e vem atuando conforme dela se poderia esperar. Não é o Supremo nem as ONGs amazônicas que surpreendem, mas os senadores que com tudo concordam e o silêncio do jornalismo militante.

Se toda essa sabedoria jurídica tivesse aflorado há um século, o que seria o Brasil? Uma revolução transcorre diante de nossos olhos e quem não gostar coma brioche.

Percival Puggina (78) é arquiteto, empresário, escritor, titular do site Liberais e Conservadores (www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país.. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+. Membro da Academia Rio-Grandense de Letras.

 


Paulo Antônio Tïetê da Silva -   23/09/2023 22:58:03

Minhas dúvidas: 1 - Quando vão ordenar que, no quadro da Prmeira Missa no Brasil, seja apagado o altar e a cruz implantada por Cabral e, ali pintada uma oca, porque aquele terreno pertence aos índios. 2 - Como os indíginas não sabem e não tem meios de fazer alpinismo, quando vão obrigar que a estátua do Cristo Redentor, seja transferida para o Pão de Açucar, para que o Corcovado seja ocupado pelos índios Tamoios, que poderão continuar controlando quais caravelas estarão entrando na Baia da Guanabara.

Ademar Pazzini -   23/09/2023 20:02:43

Acompanhei todo o drama dos agricultores de Roraima, expulso de forma inescrupulosa por um Estado submisso a uma agenda internacional espúria, e que hoje está sob ataque de uma guerra híbrida imperceptível pela sociedade em geral, e que atua com desinformação, diplomacia, lawfare e intervenção eleitoral externa. Andrew Korybko, em seu livro sobre o tema, pontua que a guerra híbrida explora por intermédio de agentes externos, conflitos identitários, que exploram diferenças históricas, étnicas, religiosas, socioeconômicas e geográficas em países de importância geopolítica. Assim, continuamos assistindo estupefatos, o STF causando enorme mal ao País e ao seu povo, legislando no lugar do Congresso e em total desrespeito à CF/88, da qual são guardião. Ainda tenho esperança que o Senado tome vergonha na cara e coloque ordem na República.

MARCO ANTONIO GEIB -   22/09/2023 22:44:46

Professor existe alguma restrição sobre meu comentário de hoje, apesar de ter sido publicado ???

ODILON ROCHA -   22/09/2023 20:25:37

Infelizmente, verdade seja dita, esse processo de "atendimento" a interesses estrangeiros vem sendo costurado, ora mais, ora menos, desde antes da CF 88. Parece que agora, tristemente, vai. Apátridas e desinteressados pelas coisas do Brasil, os senadores nem parecem indignados. Um ou outro, escreve algo. Mas guerra de papel não surte efeito. Tudo muito estranho. Quem está, e quantos estão ganhando com uma soberania que clama por um pouco de patriotismo que seja.

Joel J. Cândido -   22/09/2023 15:47:37

Dificilmente lerei artigo melhor, a curto prazo, sobre essa nefasta decisão e o que ela significa para nosso País. Talento não é para quem quer; é para quem tem. Parabéns, Puggina!

Danubio Edon Franco -   22/09/2023 14:24:32

A cada decisão do STF o caos se faz mais presente. Em outra oportunidade, eu disse que o STF perdera o rumo. Como órgão máximo julgador do Poder Judiciário, não tenho dúvida que isso ocorreu. Valendo-se da omissão do Congresso Nacional, chamou para si todos eles. Assim foi no governo anterior e assim continua no atual, um pouco mais ameno. No entanto, estou chegando a conclusão que não perderam o rumo, ao contrário, estão no rumo que traçaram e dia após dia, julgamento após julgamento, vão consolidando os objetivos previamente estabelecidos. A derrubada do marco temporal marca o início da instabilidade social, cujo resultado não se sabe ao certo para onde nos conduzirá. É certo, porém, que abre o caminho para um regime de força. E seja lá o que vencer, nenhum nos serve.

Afonso Pires Faria -   22/09/2023 12:21:02

Estou fazendo um texto para postar no meu blog, já faz alguns dias e versa justamente sobre estas interpretações dúbias, quando não contraditórias do nosso "stf". Vou tomar a liberdade de roubar-lhe algumas colocações. Brilhante professor. Vai ao encontro do que penso quando falas do que seria do Brasil. A pouca "voia" do povo indígena seria um terreno fértil para se implantar o que se vive em Cuba, por exemplo.

Eduardo Módolo -   22/09/2023 11:56:22

Prezado Roberto Baroli. excrecência é pouco, na verdade são 81 montes de merda que não fazem outra coisa senão defenderem seus bolsos. Um amontoado de ladrões com destaque para o " CENTRAO " que decide a maioria e sempre do lado do PODER. Pobre Democracia Brasileira.

MARCO ANTONIO GEIB -   22/09/2023 11:34:04

Professor já não sabemos o que pensar sobre o Marco Temporal, entendemos que seja necessário para evitar que destrua o patrimônio de anos de pessoas que já tem o direito sobre as terras em discussão. Temos a posição do STF a respeito... e no "arremedo" de uma Câmara de Deputados Federais, tramita um Projeto de Lei que irá "aprovar" o Marco Temporal....!!! Então qual "DECISÃO IRÁ VALER", a do STF ou a da Câmara dos Deputados...??? A decisão do STF tira o patrimônio de centenas de famílias que sequer tem para onde ir e entregar a obra feita a um Bando de desocupados, alcoólatras ou contrabandistas que até hoje jamais pegaram em uma enxada... !!! Existem bons índios que preservam suas origens, ritos, mitos, crenças e agricultura de subsistência. O resto para suas vidas o Governo Federal por direito deve prover.

Menelau Santos -   22/09/2023 10:32:54

A lucidez deu lugar à desfaçatez.

Decio Antonio Damin -   22/09/2023 10:25:49

Quando os portugueses aqui chegaram os índios tinham todo o território à sua disposição, mas habitavam, preferencialmente, o litoral...! E então...?!

Elton Antônio Klein -   22/09/2023 10:06:58

Hoje só existe um poder no Brasil. Ele fabrica, interpreta o que está pronto e faz cumprir suas ordens só bel prazer. Aos outros poderes, acovardados, cumprem de olhos fechados. Vergonha desta classe de políticos obedientes e medrosos.

Beatriz Cherubini Alves -   22/09/2023 10:02:19

lamentando esta decisão do judiciario.Estamos mal representados. O Agro que vai sofrer pois as ongs se instalrão nestas areas que por direito é de quem adquiriu em tempo certo pois eram áreas que por muitos anos não tinham indios. Muito triste.

Roberto Baroli -   22/09/2023 08:49:31

Desculpe, mas o Sr. falou "senado"? O Que é isso? Alguma excrecência que apareceu e sobre a qual nada sabemos?

Alcides Blois -   22/09/2023 07:37:49

Não temos mais nenhum dos três poderes. Um legislativo acovardado, um judiciário que não faz justiça e um executivo que prefiro nem comentar. Brasil escorregando ladeira abaixo.