• Percival Puggina
  • 05/10/2017
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NADA MAIS IMPORTANTE!

Gosto de escrever crônicas. No entanto, raramente consigo pois a urgência e a arrogante importância das pautas cotidianas consomem meu tempo. Hoje, não.

 

Aconteceu no centro de Porto Alegre, em local inesperado e hora imprópria, proporcionado por uma única protagonista. E duvido que a maior parte dos transeuntes tenha prestado qualquer atenção ao que estava em curso.

 A personagem cobria-se com andrajos. A pele, envelhecida, visivelmente não se encontrava com água há muito tempo. Todo seu aspecto, dos cabelos aos pés, dava a impressão de se tratar de pessoa egressa de um sanatório para doentes mentais. Sentada ao meio-fio, ignorando o mundo que fluía ao seu redor, com um rasgado sorriso de felicidade, a mulher pintava as unhas dos pés descalços.

 Foi um flash, um instante fugaz, colhido pela retina enquanto o carro descia a movimentada rua. Mas nunca esquecerei a imagem de alguém que perdeu tudo, inclusive a razão, sem perder a vaidade. A mais bela metade da humanidade estava ali representada, num espetacular, eloqüente e silencioso comício da feminilidade.

Pode parecer estranho, mas me senti, como homem, homenageado por aquele gesto aparentemente tão impessoal e fútil quanto deslocado. Mulher mãe, filha, esposa, namorada, amante. Mulher sadia ou enferma; bem cuidada ou maltratada. Vaidosa, dengosa e valente. Não há no mundo nada mais importante nem mais interessante do que a mulher.

Quantas lutas não encontraram lenitivo no vazio daquela loucura? Quanto abandono, traição e combate desigual não a conduziram ao precipício da demência? Mas a vaidade, mulheres que me lêem, a tudo resistiu. Quantas pessoas não terão passado ali e visto nada além de uma expressão da moléstia? E no entanto – insanos! – aquelas mãos sujas escreviam nos pés encardidos, com pincel e esmalte, uma poesia de rara beleza.

Leitor fugaz daqueles versos eternos, deixo aqui minha própria homenagem ao que eles expressam. E fique a pauta política inteira para amanhã!

 

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* Percival Puggina (72), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A tomada do Brasil. integrante do grupo Pensar+.

 


Dulce Toledo -   09/10/2017 19:21:54

Caro escriba muito querido, como é bom ler este artigo. Não por ser mulher, mas por ver que os olhos cansados de tanta feiúra que a miséria humana escancara nesta mulher abandonada pela vida foram capazes de enxergar: um instante de beleza. A beleza é necessária para a alma como lenitivo, consolo e prazer, mesmo que fugaz na cor de um esmalte nos pés sujos e cansados e trilhar os caminhos pedregosos da vida. Estes olhos cansados, que nem lágrimas devem portar mais, viram naquele vidrinho de esmalte e na ação de se embelezar, um refrigério, uma brisa fresca no calor da vida. Aposto que havia um sorriso ingênuo, infantil mesmo, sincero na boca que expressava o que os olhos viam. Benditos foram os seus olhos, caro escriba, que captaram o momento que a alma se impõe às dificuldades do caminho e do caminheiro. Isto é dádiva que poucos recebem. Obrigada por trazer esta imagem a nós. Grande abraço.

Andre Flavio -   08/10/2017 20:23:28

Meu caro. Como é bom poder ler seus escritos!

Carlos Edison Fernandes Domingues -   07/10/2017 17:34:14

PUGGINA No meu caminho encontro pessoas iguais a estas que te despertou a vontade de escrever e, com a tua sensibilidade, nos fizeste comtemplar o mesmo quadro humano e real. Em momento semelhante eu imagino que aquele ser foi amamentado com o sorriso de uma mãe; que brincou com uma boneca de pano ou um avião de plástico e dependeu da bola de um amigo para jogar. Recebe meu fraternal abraço. Carlos Edison Domingues

Abrahao Finkelstein -   06/10/2017 11:30:17

Mestre em lirismo, também.

Flavio Zabotto -   06/10/2017 07:24:01

Em meio à feiúra dos políticos e da má política que nos assola arrogante como um peso eterno, Puggina, vê numa réstia de luz, à beleza necessária que alimenta nossa sanidade, e porque não, também, um Eia! Avante! Temos mais batalhas pela frente e o cume a conquistar. Pois eis que a sombras, querem nossa capitulação.

Antônio Ramalho -   06/10/2017 07:02:07

ah, a felicidade, algo de que são feitos as crianças, os loucos e os santos . Senhor, quero ser feliz.

Genaro Faria -   06/10/2017 04:38:24

Lembrei-me, imediatamente, de Gabriel Brunet, parisiense da Legião Estrangeira que morreu no Vietnam: Tout homme peut bafouer la cruauté et la stupidité de l'univers en faisant de sa vie propre un poème d'incoherence et d'absurdité. Meus parabéns, mestre Puggina. Post script - Depois dos mais recentes pronunciamentos dos comandantes do EB, eu resolvi "desligar o rádio". Todo silêncio é pouco. Não podemos alertar o inimigo. Falemos de flores...

Odilon Rocha -   05/10/2017 20:36:59

Caro Professor Belas linhas que descrevem um átimo de lucidez na demência. Só o senhor, mesmo.

Antonio Carlos da Silva Junior -   05/10/2017 19:17:06

Lindo.

Paula Roquetti -   05/10/2017 16:22:15

Belíssimo texto, obrigada! Tornou o meu dia mais belo??.

Carmem Andrade Paulino -   05/10/2017 16:14:31

Sempre leio seus textos mas nunca comentei. Hoje, por uma incrível e bendita curiosidade, resolvi ler. Fiquei maravilhada com o que você descreveu com tanta poesia e ternura. Meus parabéns pela linda crônica!!!

Patrícia LANZONI da Silva -   05/10/2017 13:53:16

obrigada Professor, beleza no meio de tanta feiúra atualmente!