Como podem os patos questionar a visão e o voo da águia? E como pode a águia descer das montanhas para molhar os pés nos charcos e açudes?
Fazia-me essa pergunta inúmeras vezes enquanto lia, em 2016, os originais do livro Bandidolatria e Democídio para escrever seu prefácio a convite dos doutores Leonardo Giardini de Souza e Diego Pessi. Ambos, ao longo da obra, percorrem com talento e rara habilidade os dois planos tão distantes.
Durante o primeiro governo petista no Rio Grande do Sul, tivemos um secretário de Segurança Pública cujas práticas se alinhavam com teses sociológicas e filosóficas sobre as quais discorria com enorme domínio e fluidez. O problema estava em que quanto mais se elevava, no jurista, a paixão pela ideia, mais os pés do secretário de Segurança afundavam no piso dos fatos, ali onde a criminalidade faz suas vítimas e onde atuam os que a devem enfrentar. Foi um desastre.
Todo militar, mesmo que jamais tenha sido combatente, sabe que crescem as possibilidades de vitória de quem consegue atrair o inimigo para um terreno onde ele esteja menos preparado. Graças a essa estratégia, aliás, muitas guerrilhas resistem, por anos a fio, a exércitos poderosos. O mesmo vale para combates verbais, especialmente para este de que aqui trato. Os filósofos do garantismo penal não resistem ao primeiro choque de realidade.
Somente uma imensa afeição ao papel revolucionário da violência criminosa desconhece o fato de que quando o Estado não faz justiça com as mãos que a sociedade lhe deu, esta passa a fazer justiça com as próprias mãos. E se estabelece a barbárie. No lirismo garantista, contudo, o réu é a primeira vítima, é alguém de quem não se pode exigir outra conduta. Vêm daí as propostas de desencarceramento (vitoriosas na decisão contra a prisão após condenação em segunda instância), de abertura das prisões em virtude do coronavírus, de tratar como presumivelmente inocentes réus confessos e presos em flagrante, e as insistentes afirmações de que “No Brasil se prende demais”, apesar de o crime contra a vida e o patrimônio correrem soltos nas ruas, aos olhos de todos.
Vale à pena prestar atenção, nesses casos, ao uso e ao abuso da abordagem filosófica e sociológica como tática para encobrir a nudez da realidade com a folhinha de parreira da ideia. E quando alguém busca trazer o debate para o pó e o barro dos fatos, esses juristas (sempre da mesma banda ideológica) com estudado sarcasmo, cuidam de transformar tal conduta num ato de desrespeito ao elevado plano intelectual em que elaboram suas reflexões. Como podem os patos questionar a visão e o vôo da águia? E como pode a águia descer das montanhas para molhar os pés nos charcos e açudes?
No entanto, assim como os patos conhecem o açude melhor do que a águia e a águia conhece a montanha melhor do que os patos, não pode o pato policiar a montanha nem a águia ser xerife do açude.
Descartes jamais diria “sou assaltado, logo existo”. Se filosofar fosse indispensável à segurança pública, todos, do coronel ao soldado e do delegado ao escrivão, deveriam se dedicar a tão elevados exercícios do espírito e da mente. E, nesse caso, quem iria atender o 190?
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* Percival Puggina (75), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.
Eliara - 02/04/2020 21:04:53
Excelente!!!!!!Joao Eichbaum - 02/04/2020 20:25:12
Como sempre, brilhante, Puggina. Conheci muito bem o secretário, que desapareceu no pó... Vários policiais morreram , graças àquela filosofia de respeitar o bandido...LUIZ GONZAGA FARIAS - 31/03/2020 19:06:33
O brasileiro costuma imitar o americano em algumas áreas ou atividades humanas. Gostaria de vê-lo imitar nos procedimentos da justiça. Numa penitenciária, penso que a autoridade maior deveria ser o Diretor, que foi nomeado por suas qualificações ou méritos. No Brasil, não vejo prestigiarem essa figura, pouco se fala do Diretor quando acontece algo de anormal na rotina do presídio. A imprensa toma conta logo da situação, o Secretário de Justiça, o o Chefe de governo, etc, menos o Diretor que fica totalmente esquecido do noticiário, não vejo dando entrevista e a impressão que dá é que não passa de um cargo político arranjado por alguém importante, mas sem poder de decisão. Espero que esteja errado, mas nos filmes policiais americanos o Diretor de uma penitenciária logo se destaca e tem força dentro de sua área de atuação. É o chefe maior.Amelia - 30/03/2020 23:45:19
Sensacionallllllllll ??Luiz R. Vilela - 30/03/2020 12:01:06
Bom, dizem que o crime, é toda e qualquer inobservância do preceito legal. Para que exista o crime, deve haver lei anterior que o defina com tal. Temos no Brasil, uma gama de leis que definem a ação criminosa. Pela legislação penal, estaríamos até razoavelmente protegidos da criminalidade. O problema são as leis "maiores", que contemplam sempre os interesses políticos, mas que no "varejo", causam problemas ao combate a criminalidade. A derrubada do entendimento do cumprimento da pena já em condenação em segunda instância, é o exemplo mais "exemplar" disso. Enquanto eram apenas os 3 Pês, suspeitos de sempre que deveriam cumprir pena após apenas um recurso, tudo ia muito bem. Porém um dia chegou a um presídio um quarto P, um PODEROSO, ai tudo mudou. Para beneficiar a apenas um, tiveram que beneficiar milhares de outros, inclusive com condenações por crime de sangue, que agrava ainda mais a responsabilidades dos que mudaram o entendimento. Diz-se que a esquerda é simpática aos criminosos, que os consideram frutos dos desarranjos sociais e outra bobagens mais. É bom lembrar que em todos os países onde o comunismo se instalou, o povo os aceitou, devido ao estado de barbárie que a criminalidade tinha imposto a população. Chegaram e realmente corrigiram a situação, só que com métodos brutais, ou ninguém lembra dos fuzilamentos em massa ocorridos na União Soviética, Cuba, China e outros países da mesma tendência. Aqui se dizem defensores dos "excluídos", mas na verdade, é apenas uma tática, para que se estale o caos, depois o povo roga por providências, então eles se apresentam. O modelo é antigo, não sei se ainda funciona. O Bolsonaro e o Sergio Moro, terão que penar muito, para mudar alguma coisa, a turma da "boquinha" é muito grande e faminta.adão Silva Oliveira - 29/03/2020 23:28:01
Concordo em gênero, número e grau com o texto. Só me preocupo com uma coisa. Como os extremos se equivalem, prender geral - sem lugar nas prisões e falta de recursos para fazê-las e mantê-las - não deixar de ser também um mero sonho filosófico. Está falando aqui quem trabalhou 30 anos como Agente Penitenciário. As prisões são um faz de conta. O Estado não tem a mínima ingerência sobre o que ocorre lá dentro. É um salve-se quem puder. Quando vejo as autoridades falando "grosso", não posso conter um triste riso interno.ODILON ROCHA - 29/03/2020 22:18:45
Simplesmente genial, caro Professor. Também filosofando, Deus , inteligência suprema do universo, causa primária de todas as coisas, sabia e bondosamente permite que cada um esteja no lugar que conquistou. Assim sendo, criminoso, bandido, sem meias palavras e filosofias, é na cadeia!Guilherme Villela - 29/03/2020 19:12:11
Muito bom! Como sempre.