• Percival Puggina
  • 28/10/2016
  • Compartilhe:

EM PORTO ALEGRE, ANOS 60

 

 Não é para me exibir, mas eu vivi, amei e curti a Porto Alegre dos anos 60. E isso me dá uma boa perspectiva para perceber a involução dos padrões de segurança, conduta social e qualidade de vida no Brasil. O que vou contar fala daqui, mas pode se referir a qualquer das nossas grandes cidades.

 Em 1964, minha família morava na avenida dos jacarandás floridos, a José Bonifácio, recanto privilegiado da cidade, que, em toda sua extensão, confronta com o belo Parque Farroupilha. Era, então, uma rua tranquila, cujos moradores dispunham do maior jardim da cidade, em usufruto, na soleira da porta. A Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRGS, onde ingressei naquele ano, situa-se no lado oposto do parque, que tem forma triangular. Nós morávamos na base e a faculdade ficava pouco além do vértice superior. Pelo centro do parque, naquela direção, abre-se um eixo monumental, cercado de densa vegetação e árvores de grande porte. Ou seja, eu tinha à minha disposição, para ir e retornar da faculdade, iniciando a poucos passos do edifício onde morávamos, essa paisagem privilegiada para a travessia de uns 700 metros.

 As aulas do curso de arquitetura se desenvolviam em dois turnos cheios, diariamente, pela manhã e à noite. Durante a tarde, eu trabalhava. Portanto, o caminho que acabei de descrever foi percorrido por mim durante cinco anos, quatro vezes por dia, inclusive no turno da noite, que se encerrava por volta das 23 horas. Aos sábados, como frequentador das reuniões dançantes da faculdade e dos bailes da Reitoria - que se situava exatamente na ponta do triângulo -, o retorno à casa e ao leito ficava lá pelo meio da madrugada. Eu andava por esse deserto caminho, diariamente, a pé e só!

 Não estou narrando um fato excepcional, um caso raro de sobrevivência na selva urbana, nem se intua dele qualquer proteção especial que credencie meu anjo da guarda a uma medalha de honra ao mérito (ainda que ele as mereça, e muitas, por outros motivos). Tratava-se de algo absolutamente normal, seguro. Tão seguro, leitor amigo, que em momento algum, ao longo desses cinco anos, suscitou a mais tênue preocupação, seja em mim, seja em dona Eloah, a mais zelosa e preocupada das mães desta província.

O que aconteceu com nosso país em meio século foi um desastre demográfico, social, econômico, político e moral. Engana-se quem imagina que seja assim em toda parte. Não, não é. Tenho periódicos reencontros com essa segurança em outros países, quando em férias. Neles não renovo mais a pergunta que algumas vezes fiz, indagando aos "nativos" se era seguro passear em determinado parque ao fim da tarde, ou ir a pé até tal ou qual restaurante à noite. O espanto que a indagação causa me constrange profundamente. Tanto quanto me entristece saber que nos rendemos de modo incondicional aos males que nos afetam. E o fizemos em nome de uma tolerância sem virtude, de uma liberdade sem rumo e de um progresso falido.

________________________________
* Percival Puggina (71), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A tomada do Brasil. integrante do grupo Pensar+.

 


Hamilton Belbute -   06/11/2016 15:41:29

Que bela narrativa, Mestre! Eu vivi este tempo graças a Deus e tenho enormes lembranças de andar pela velha Porto Alegre em qualquer hora do dia ou da noite tranquilamente....Ah, os bailes da reitoria! Servi a pátria amada em 1967, na 1ª Cia. de Guardas, ali na Vieira de Castro e nossas instruções eram no Parque Farroupilha...

Ronald Magri -   01/11/2016 13:18:54

Prezado Percival: Permita-me a intimidade de velho leitor para compartilhar consigo a experiência de estudante na década de sessenta, num país que não existe mais. Vivia então minha família em São Paulo, no velho bairro operário do Cambuci, e eu, menor de quinze anos de idade, estudava química à noite na E. T. Oswaldo Cruz, na Av. Angélica. Muitas e muitas vezes, só ou em companhia de colegas, após o término das aulas às 23 hs, atravessei a cidade a pé, por pura alegria de viver, para tomar o bonde na praça João Mendes, num percurso de talvez 3 km pelas avenidas S. João, Ipiranga. S. Luiz, Xavier de Toledo, viaduto do Chá, rua Direita e praça da Sé, sem que jamais passasse pela cabeça de ninguém que um estudante pudesse ser morto para lhe roubarem um par de sapatos Vulcabrás ou um relógio de corda. Embora o percurso beirasse a zona dos prostíbulos e inferninhos da cidade, ninguém molestava um menor, e o cheiro de maconha era desconhecido, ao menos para nós. Esse trajeto, hoje em dia, é possivelmente um dos safaris mais arriscados do mundo, a qualquer hora. Anos antes, ainda crianças, nós, de classe média baixa, habitantes de um conjunto habitacional do IAPI, brancos e negros, brincávamos com os filhos dos moradores de barracos da vizinha várzea do Glicério, na maioria migrantes pardos interioranos, sem nunca ter ouvido falar, nem em casa nem na escola, de racismo e luta de classes. Rico era quem tinha carro, mas ninguém tinha-lhes inveja, nem ódio. Aquele país, chamado Brasil, era mais pobre e melhor do que o que hoje responde pelo mesmo nome.

Marcia Barberio -   31/10/2016 12:54:53

Olá Pugina, Tenho a sua idade e desta forma tive o privilégio de viver os anos 60, aproveitando todas as mudanças que ocorreram no mundo nesta década. Só que em São Paulo. Realmente, ......boas lembranças.

Ismael de Oliveira Façanha -   30/10/2016 19:34:09

Interessante o TRIIÂNGULO DE PUGGINA: A FACULDADE DE ARQUITETURA, A IGREJA SANTA TEREZINHA E SEU LAR. Em meio, o campo da Redenção. Bons tempos de uma Porto Alegre realmente feliz.

Milton Lorena -   30/10/2016 14:39:00

Percival Puggina, além de um cronista lúcido e inteligente, é também um grande poeta!

Luiz Fernando beskow -   30/10/2016 13:38:32

Caro Puggina, As lembranças da Av.jose Bonifácio, do parque da redenção, do cinema avenida dos festivais tom & jerry sempre estarão presentes nos que viveram os anos 60 por ali. Um abraço pelas palavras que li com feliz emoção neste domingo cinzento de Brasília, lembrando quando toda manhã cedinho, saímos de casa, na José Bonifácio,eu e meu irmão Paulo Roberto , com a merenda feita pela nossa mãe , atravessando o parque da redencao para o colégio de Aplicação, então uma construção de madeira, tipo as escolas do Brisola, justamente ao lado da faculdade de arquitetura, para onde você se encaminhava toda manhã, naqueles tempos verdes. Talvez quem sabe não fomos parceiros ocasionais de travessia por dentro do parque, naqueles idos de 60, mas certamente sem a preocupação que hoje todos têm ao por ali caminhar. Um abraço

Don Élister -   30/10/2016 13:21:08

Meu amado pai, que hoje descansa da vida em um sono profundo, costumara gastar longas e deliciosas horas discursando sobre sua juventude segura; sempre me conseguira fazer sentir saudades de um tempo que nunca vivi. Com as palavras amargando na boca, digo que nos meus dias só sinto-me seguro quando no meu quarto pedindo em oração que Deus tenha misericórdia deste país...

Teresa Camisão -   30/10/2016 01:04:58

Essa é a melhor parte: "Vivíamos com segurança, e uma qualidade social de vida incomparável". Meu RJ nesta época podia sim, ser chamado de "Cidade Maravilhosa". É triste ver as pessoas abandonando sua cidade pela total falta de segurança, respeito e educação, há....essa então muita gente não sabe o seu significado. Isso prova que quantidade nunca foi sinônimo de qualidade. Essa mesma "quantidade" que sufocou, e continua asfixiando as pessoas de bem. Triste, mas é a pura realidade.

CARLOS ALBERTO CORDELLA -   29/10/2016 23:33:05

Prezado Puggina, nos meus 62 anos de vida, fico admirado ao ver que a grande maioria das pessoas com menos de 40 anos, acreditam piamente que o Brasil sempre foi assim. Estamos há 22 anos sob regime socialista, é natural que pessoas com mesmos de 40 anos acreditem em coelhinho da Páscoa, Branca de Neve, Lula, Papai Noel, Dilma e assim vai. O pior é quando tentam nos ensinar que o que vivemos não era verdadeiro, pois eles aprenderam que o Brasil melhorou muito nos últimos 20 anos em todos os sentidos, seja na educação, na saúde, na economia, na segurança pública, nos direitos individuais, empregos, salários, enfim o Brasil nunca foi o que é hoje, um país em plena democracia. E assim caminha a humanidade.

Ismael de Oliveira Façanha -   29/10/2016 21:50:06

Pois é, todo o relatado advém da miséria crescente, do desemprego, do consumo de drogas descriminalizado. Tenho uma frase, minha ou de outra fonte que esqueci: "Quem trabalha não rouba". A burguesia blindou sua supremacia econômica, de classe virou casta (emprego e aprovação em concurso só com "padrinho"), deixando, se muito, os ossos para o povão roer; mas as massas ociosas não ficam "desempregadas", porque muitos e muitos deles vão furtar, roubar e traficar, levando as elites a literalmente se blindar, gradeando, cercando, eletrificando, suas casas e seus condomínios e seus carros. Estamos na via Apia para a guerra civil, e convulsão social. Quem puder, que faça como o ex-governador Antônio Britto, saia enquanto é tempo de escapar com suas famílias, do armagedon brasileiro.

Antonio A. d´Avila -   29/10/2016 17:51:33

Palavras comoventes, no entanto, penso que precisamos olhar para a frente. A hora é de lutar pelas reformas. Se não nos mobilizarmos, as forças do atraso sairão vencedoras e amanhã elegerão mais um "salvador da pátria". De tempos em tempos, o sebastianismo ressurge e é eleito um novo monarca, sagrado e consagrado pelas urnas.

Gustavo Freitas -   29/10/2016 15:13:16

Sr. Puggina. Essa degradação, principalmente a moral, salta aos olhos de quem viveu, num país anterior a essas degradações. No começo da década de 1970, meu saudoso pai, dizia que o Brasil, estava perdendo o princípio da autoridade, e veja no que está dando. Lamento muito pelas pessoas caráter e dignidade. E o que mais me espanta, é que na minha família de gente bastante esclarecida, tem pessoas que defendem esses pulhas que destruiram o país.

Fernando Luiz Brauner -   29/10/2016 15:00:19

Imagines o que dizer, quando morava na " Então Maravilhosa e de milhões de encantos"? Praias de fazer "jacarés", noitadas ao som de Dolores amiga, " madrugas no Arpoador... Assistindo ao sol nascer e muito mais, atendendo minhas obrigações, quando ja formado em Medicina (1956). atendendo nas favelas e abraçado por eles... Esquecidos da "sociedade, mesmo naquele tempo"! Hoje trabalhando em Pelotas... Ainda, comparativamente, +/- tranquila... " QUE SAUDADE DOS TEMPOS IDOS..."! Abraços do amigo Fernando Luiz... Aos 85 de idade e, em 13/12, 60 anos de bem formado e gozando com Yvonne , a familia por nós construida!

Fernando -   29/10/2016 14:16:57

Parabéns Puggina . Perfeitamente . Nós subíamos o viaduto da Borges voltando do cinema desde a rua da Praia às 23 ou 24 h caminhando tranquilamente . Jamais fomos importunados . Pena . Uma cidade gentil , educada , limpa que desapareceu . Isto sem falar nos bondes da Duque que para apanhá-los atravessava a P da Alfândega após as reuniões dançantes no Club do Comércio ( assim eram chamadas na época ) em total segurança . Oh saudade .

Antonio Marques Emerim -   28/10/2016 18:51:06

Me tocou muito seu comentário, pois que passei exatamente isso, que foi narrado. Também residi neste lado da redenção, Rua Olavo Bilac, e também percorri este trajeto nos horários descritos. Fiz engenharia na UFRGS desde 1966 e este era meu caminho. Nunca nada me ocorreu ou me assustou. A segurança era absoluta, graças ao "terrível regime militar".

Genaro Faria -   28/10/2016 15:25:08

Caríssimo Puggina, casos tão banais como o que foi aqui narrado parecem, aos mais jovens que nós, fabulosos. A mim constrange a expressão de assombro que percebo a cada vez que me ouvem contar sobre a realidade que se vivia nas cidades daquele tempo. Constrangimento este que não vem da incredulidade deles, mas de uma censura velada que irroga a responsabilidade de nossa geração por lhes ter legado um quadro tão desolador. Com razão, aliás, pois a quem mais caberia a culpa? Mas foi nas últimas duas décadas que o quadro de nossa decadência moral, social, econômica, civilizacional, deteriorou-se e se intensificou pela ação de governos que deliberaram a celebração do caos como fundamento de uma revolução que assentaria, de modo definitivo, os "companheiros de armas" e "heróis do povo brasileiro" no poder.

Odilon Rocha -   28/10/2016 14:36:24

Caro, Professor. Errata: É com pesar que compartilho... . A alegria foi por conta de saber que o senhor também residiu naquela área. E me perdi... .

Odilon Rocha -   28/10/2016 14:21:59

É com imensa alegria que compartilho das suas sábias palavras que descrevem muito bem a atmosfera pestilencial que respiramos no país, fruto da nossa complacência doentia. Minha mãe mora na José Bonifácio desde 1975, onde passei algum tempo antes de partir para a vida. Então, caro Professor, compreendo muito bem as suas um tanto quanto condoídas palavras. Exatamente isso! Abraço!