• Percival Puggina
  • 06/05/2024
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Distopia gaúcha

 

Percival Puggina

 

Senti vontade de dizer ao Guaíba como Fernando Pessoa disse ao mar das Grandes Navegações: Quanto de tuas águas são lágrimas do Rio Grande do Sul!

       Era madrugada de domingo 5 de maio em Porto Alegre. Fui acordado por novas trovoadas que antecederam a forte chuva que sobreveio. Olhei para o relógio. Quatro horas da manhã. Levantei-me para verificar se a casa estava bem vedada e pus-me a pensar sobre o sofrimento de tantos gaúchos neste que é o quarto desastre climático que se abate sobre o Rio Grande do Sul em menos de 12 meses e é o maior de sua história. Impiedosa, prosseguia a chuva no que parecia um líquido e aéreo bombardeio. Vem daquelas reflexões noturnas o conteúdo deste artigo.

O fotogênico Guaíba – que sempre foi rio, mas era um estuário e modernamente, juram os geólogos, é um lago – em complô com os cinco rios que a ele contribuem, expandiu seus domínios sobre todos os baixios rurais e urbanos no seu entorno.

Penso sobre o Estado e o tal “poder público” – tão pouco público! De modo sistemático, ao longo de décadas e em todo o país, o dinheiro da sociedade, pagadora das contas, vem sendo usado, preferencialmente, para robustecer a máquina e para os projetos de poder político (quando não, também, “otras cositas mas”). Já pensaram o montante a que chegaríamos capitalizando apenas 20% disso ao longo de décadas? Como resultado, a potência do poder público se dissipa em si mesmo e ele fica sem meios para atender suas atividades fins. O resultado se expressa em ações insuficientes, obras raras e “baratas”, tecnicamente modestas e frágeis. O dinheiro é escassíssimo até para prevenir, inspecionar e conservar o que já se tem, mas para o núcleo da máquina, não.

Seria impossível não escrever sobre a tragédia que se estendeu por todo o Rio Grande do Sul. Até agora, 340 de seus 497 municípios são vitimados por ela. Nesta manhã de segunda-feira 6 de maio, contam-se 83 mortos, 101 desaparecidos, 120 mil pessoas desalojadas de suas moradias. Porto Alegre inundada numa proporção e extensão simplesmente inimaginável. As cenas exibidas pelos noticiários parecem captadas de alguma distopia barrenta.

Vivo aqui desde 1959, ou seja, cheguei quando passavam 18 anos da maior enchente já registrada, a de 1941. Nela, o Guaíba, esplêndido lago que abraça Porto Alegre, alcançou a cota de 4,75 metros. Alguns prédios do centro da cidade tinham na parede a marca do nível então alcançado pelas águas.

No início dos anos 70, como arquiteto, participei do projeto de um porto, no Rio Taquari, cujo cais ficava a poucos metros da rodovia que hoje aparece submersa. Prolongados estudos de hidrologia foram feitos sobre uma possível repetição da enchente de 1941, que tangenciaria o nível das instalações portuárias que projetávamos. Conclusão: aquela enchente teria um período de recorrência de cem anos. Ou seja, havia a possibilidade de que uma enchente, por século, atingisse o cais do porto que estudávamos. Provou-se bem ajustado o trabalho dos nossos peritos de então: transcorreram 83 anos até que esta nova enchente atingisse e derrubasse a marca de 1941 – lamentavelmente para ultrapassá-la em mais de meio metro.

No bairro onde moro, estamos numa cota bem superior à da área de inundação. Mas, como a maior parte da cidade, estamos e estaremos nos próximos dias vivendo o drama comum e fazendo a experiência dos camelos, sem água tratada para qualquer aproveitamento humano.

Acima da imprudência no gasto do Estado, acima da imprudência das ocupações ribeirinhas, acima dos erros de engenharia, acima de quatro tragédias de origem climática em menos de 12 meses, ergue-se, gigantesca, a solidariedade. Em comovente mobilização, o Rio Grande inteiro, o Brasil e os países vizinhos acorreram para a atenção às vítimas. As benditas redes sociais, essas mesmas que tanta indignação causam aos espíritos que apreciam o povo silencioso, têm sido instrumento importante para levedar e ampliar a extensão da solidariedade que mobiliza a todos em torno do drama gaúcho.

Há uma multidão silenciosa que gostaria de repercutir seu agradecimento e pede orações e apoio para reconstrução de suas vidas.

Percival Puggina (79) é arquiteto, empresário, escritor, titular do site Liberais e Conservadores (www.puggina.org), colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+. Membro da Academia Rio-Grandense de Letras.


marisa van de putte -   07/05/2024 23:51:08

Caro senhor Manelau Santos. O senhor mencionou exatamente o que pensei sobre a inundacao de 1941. Tento imaginar o que diriam os senhores ambientalistas donos da verdade?

Ana Regina G.Bouças -   07/05/2024 17:34:55

Suas palavras descreve bem o Brasil, ou melhor os dois Brasils que existem aquele do poder público e solidário do povo brasileiro, esse o real . Que Deus abençoe, proteja e fortaleça ainda mais os gaúchos, bravos brasileiros.

Decio Antonio Damin -   07/05/2024 14:19:08

Ciclos de aquecimento e resfriamento da Terra ocorrem desde há milhares de anos, e desde muito antes da presença do "sapiens" por aqui...! A inclinação do eixo do planeta com suas variações responde também por esses efeitos...! Agora temos de encontrar culpados e, diga-se de passagem, não há unanimidade entre os cientista que estudam as causas do aquecimento e de suas consequências...!Agora, de uma coisa temos certeza: O descaso como a prevenção aos efeitos desses fenômenos é tratada pelo poder público...! Uma comporta enferrujada que não fecha, e tem de ser empurrada por uma máquina pesada, uma barragem que cede, as bocas de lobo entupidas, a água que verte pelos ductos de escoamento, as máquinas das estações de bombeamento que não funcionam, a energia que falta para movê-las... e por aí vai...!! Não sã os únicos culpados..., mas que colaboram com o caos, não há a menor dúvida...! E essa atitude vem de muito longe e todos tem sua parcela de culpa!!!!

Ivani Lima -   07/05/2024 11:40:54

Seus textos, como sempre, me emocionam. Esse, encheu-me os olhos de lágrimas.

Paula -   07/05/2024 09:26:41

Sou da terra que quase não chove,Ceará. Rezo pedindo a Deus misericórdia para esse povo que está sofrendo. Peço também a Deus, venha uma solução para que não volte acontecer

Menelau Santos -   07/05/2024 09:09:17

Parabens, Professor, pelo artigo e também a minha solidariedade e orações ao povo gaúcho. Agora, só uma observação, a Globo não perde a oportunidade de fazer propaganda da agenda globalista em cima dessa tragédia. O Bonner começou dizendo que é uma "tragédia climática", fazendo alusão clara ao aquecimento global. O aquecimento global, como eles vendem, é um problema do "capitalismo selvagem" que é ganancioso e por isso há muitas fábricas que com suas chaminés superpotentes, aquecem o planeta e geram chuvas desproporcionais causando esse tipo de desastre (segundo a renomada climatóloga Janja). Fico pensando, então, qual seria a explicação para as enchentes de 1941, se na época não havia esse problema das fábricas...

José Luiz Monteiro -   07/05/2024 06:35:38

Nós, sorocabanos, que temos laços profundos com os gaúchos, desde as feiras de muares, solidarizamos com os irmãos gaúchos. Arrecadamos agua mineral, material de higiene, alimentos não perecíveis e outros gêneros que estamos enviando até o Rio Grande do Sul. Somos todos Brasil e o coração desse povo é único para ajudar em momentos difíceis. Apesar dos tropeços de insensíveis mandatários que preferem show porno nas areias de Copacabana. Eles passarão, mas o povo brasileiro não.

roberto lima de almeida neves -   06/05/2024 20:29:10

Caro Puggina. Como gaúcho há 73 anos no Rio presto minha solidariedade a todos que hoje sofrem. Obrigado pelo excelente artigo.

Teresa Cristina Estrela Campos -   06/05/2024 18:46:09

👏👏👏👏👏

Rodolfo -   06/05/2024 17:01:00

👏👏👏👏👏👏👏