Valdemar Munaro
Não há alimento mais denso para nutrir o discipulado cristão que o memorial dos acontecimentos vinculados à Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus de Nazaré. São fatos que se tornaram a espinha dorsal da vida e da liturgia, tão vívidos a ponto dos primeiros séculos se esquecerem dos natais. Por isso, a Páscoa, para onde tudo converge, constituiu-se raiz de toda história e tradição cristãs.
O testemunho quase ocular e incrível do historiador judeu, Flávio José (37 – 100 d. C.), indica que Jesus e os ladrões daquela sexta feira inesquecível não foram os únicos crucificados. Outras sextas feiras antecederam outras Páscoas, mas só aquela se tornou santa. Eram centenas os condenados e pendurados em patíbulos, à vista de todos, nas encostas de Jerusalém e de outras cidades do império romano. As cruzes, com seus condenados expostos, serviam de admoestação a pretensos delituosos e delinquentes. Muitos crucificados permaneciam pendentes e presos aos madeiros, por vezes dias inteiros, nus, reféns das aves de rapina que lhes arrancavam os olhos e/ou outros órgãos, ainda vivos, aumentando-lhes o suplício. Para apressar a morte, soldados quebravam-lhes os joelhos ou os asfixiavam com fumaça.
Centenas, como dizem as testemunhas, eram os crucificados. Mesmo o famoso Spartacus terminou no ostracismo, mas do Nazareno não esquecemos. Não é possível furtar-se à investigação histórica exclusiva daqueles acontecimentos sem encontrar neles arestas de mistérios que nos emocionam. Não é possível ler e meditar sobre aquelas narrativas cruas, diretas, desvestidas de vitimizações, de floreios literários e afetações psicológicas sem sermos interpelados. O leitor ou ouvinte que, porventura, concluir ser tudo aquilo uma invenção tem a obrigação moral e intelectual de explicar como ela se tornou possível, pois os supostos ‘inventores’ teriam de ser, então, muito superiores à própria invenção, o que não é o caso.
Aquelas narrativas, seus personagens e detalhes, encontram no livro, ‘Padeceu Sob Pôncio Pilatos’, de Vittorio Messori, uma claridade histórica inigualável. Segundo o autor (historiador e jornalista, ateu e convertido à fé cristã em razão de honesto trabalho investigativo), a grande questão que nos intriga não é tanto a Igreja, mas o fato ‘Cristo’. Todo aquele, portanto, que buscar e perseguir caminhos de fé não pode se deter nos braços e traços históricos das Igrejas porque nestas poderá encontrar mais confusão do que luz. O olhar penetrante da perscrutação deve chegar ao Crucificado. A conversão religiosa, pensava Dostoievski, não tem problemas filosóficos com Deus, mas com o Jesus histórico.
Nos acontecimentos relacionados ao Crucificado encontramos a mais impressionante fotografia do rosto divino, mas também do rosto humano. Está tudo ali. Como num ícone emoldurado ali estão retratados os limites mais perversos do mal e do sofrimento que causamos e sofremos. Estão ali as valas mais profundas da sacanagem humana. Getsêmani, Pretório e Gólgota, três momentos ou lugares que antecedem à ressurreição, indicam todas as ardilosas e ignominiosas capacidades humanas de engendrar, cultivar e praticar iniquidades. E parece que não há cura para elas.
De fato, tem algo de assustador e de insanável no sangue e na alma dos humanos. Já o sábio grego, Sócrates, quase intelectualmente desesperado, buscava remédio para sanar a vida moral dos seus concidadãos. Platão, seu maior discípulo, também tentou. Já idoso, expressou decepção e amargura ante o entusiasmo político que professara na juventude. Entre seus próprios parentes conheceu o peso da corrupção política. Deu-se conta que não basta conhecer as leis e o caminho do bem. O ‘homem mais justo do seu tempo’, Sócrates, foi conduzido à morte por malvados interesses. Aí está a prova de que o bem sofre para emergir, de que fazemos o mal, mesmo sabendo que não deveríamos fazê-lo. Segundo Platão, não há esperança, nem solução, nem salvação para a humanidade neste mundo cavernoso. Ele foi um grego inteligente, pagão, mas três séculos antes de Cristo proclamou a necessidade de uma intervenção divina para salvar a vida humana (cfr. Carta VII).
Outro pensador, Anselmo de Aosta (1033 – 1109), teólogo medieval, nas páginas de um texto chamado ‘Por que Deus se Encarnou’ pretendeu falar principalmente com muçulmanos. Seu objetivo: dizer que não nos bastam escrituras, leis e ritos. O ser humano é tão quebrado e quebradiço que não há como consertá-lo com recursos terrestres. Estamos todos contaminados pelo vírus do mal, não há um só justo entre nós e sem ajuda divina, estaríamos perdidos, alucinados e enroscados em nossas próprias teias de morte, violência e destruição. O mal que medra nosso sangue e encharca nossa alma nos criminaliza, corrói nosso espírito, decompõe nosso corpo.
As palavras de S. João segundo as quais todo aquele que ‘odeia seu irmão é assassino’ (1 Jo 3,15) corroboram a afirmação de outro apóstolo: “Não faço o bem que quereria, mas o mal que não quero... Homem infeliz que sou! Quem me livrará deste corpo que me acarreta a morte?” (Rm 7). Ou seja, não há ventre humano justo, não há viva alma livre da dívida que contraímos uns com os outros e com a inteira criação. Temos um débito infinito e um crédito ínfimo. O mal que fizemos causou um dano irreparável e nossa dívida se tornou impagável. Assim, conclui Anselmo, somente um Deus Encarnado poderia saldar nossa conta. Aquele que nada deve, paga tudo e aquele que nada paga, tudo deve.
Os relatos da Paixão registram personagens suficientes para que nos identifiquemos com eles, exceto com Jesus. Temos Pedro, Judas, Pilatos, Anás, Caifás, Barrabás, a multidão gritante, os fariseus, os escribas, os ladrões, Cirineu, os discípulos dorminhocos e covardes, os soldados, os acusadores, os juízes... O Getsêmani estampa os beijos falsos que damos e recebemos, as traições, os sonos deslocados dos discípulos (dormindo quando deviam vigiar e vigiando quando deviam dormir), as covardias e mentiras. O Pretório condensa todos os julgamentos, vaidades, tribunais, psicopatias de poder, epidérmicas superstições, palavras ocas, condenações orquestradas, acusações, injustiças. O Gólgota retrata as crucificações, os sofrimentos, as injúrias, os deboches, o cinismo, as dores, os abandonos, as mortes ignominiosas sofridas e praticadas pelos homens. Estamos todos ali representados, os traidores, os criminosos, os acusadores, os malditos e malvados, os covardes e mentirosos. Ninguém fica fora de alguma representação. Seria mau-caratismo ou ‘cara-de-pau’ alguém se identificar com o Crucificado.
Contudo, nossa verdadeira esperança se fundamenta aqui: dos sofrimentos inimagináveis, da morte ignominiosa na cruz e da sepultura escabrosa e escura na qual foi colocado Jesus, sobrou-nos o dia, o perdão, a vida, o amor sem precedentes, a ressurreição. O corpo do julgado, condenado e crucificado por nós, não se corrompeu como se corrompem todos os outros. A esperança cristã não se apoia, pois, sobre outra coisa senão nessa boa notícia de que o mal e a morte que nos amedrontam e nos aniquilam tem um inimigo: o Autor da vida que é Amor. Se o Nazareno não fosse puro amor e tivesse simplesmente morrido e não se levantado do túmulo, como diz Paulo, seríamos os mais desgraçados e dignos de lástima. Inútil seria crer e absurdo amar (Cfr. 1 Cor 15).
Ora, se ligarmos os fatos relacionados à Paixão e Morte de Cristo aos textos da Campanha Fraternidade (deste e de outros anos, porque se assemelham), colheremos doses miseráveis de teologia. Encontramos ali mais indicações éticas do que convites à conversão. As linhas escritas se parecem a ensinamentos de profetas sociais, sociólogos e filósofos moralistas. Estes dispensariam a teologia. Desprende-se, portanto, daquelas páginas, algumas conclusões:
a) Que uma parcela dos homens não é destinatária da mensagem de Jesus, pois eles já fazem parte dos redimidos em razão de sua condição vitimária. Se lêssemos, como exemplo, a frase do Evangelho: ‘Estive preso e me visitaste, nu e me cobriste’, deveríamos entender que o mandamento de Jesus vale só para o visitador e o vestido, mas não para o visitado e o nu? Claro que não! O sentido do texto, nesse caso, não é físico, nem literal como sugere a sociologia positiva. É inegável o fato de existirem muitas pessoas marginalizadas, excluídas, vítimas de preconceito, de violência e abandono. Contudo, o convite à conversão não se dirige só aos preconceituosos. Ele se dirige também, com a mesma significação e intensidade, aos que sofrem preconceitos. Por que, então, alguns grupos ficam de fora do convite a viver uma vida nova?
b) O mandamento de não julgar, nem condenar, inclui o de não inocentar. Há algum tempo, a redatora do texto da CF 2021, numa audiência pública presidida por Rosa Weber, defendeu mulheres (em nome da misericórdia e da compaixão), que haviam abortado e as tratou como inocentes. Isto é, julgo-as inocentes. À primeira vista parece que não, mas culpabilizar inocentes ou inocentar culpados nos remete à mesma conduta e igual mentalidade. Na verdade, só Deus conhece a culpabilidade ou inocência dos homens. Nossa justiça é e será sempre precária. Ela existe para que possamos pobremente sobreviver, porém, ela mesma, não salva, não cura, nem redime, não perscruta os corações. Uma pessoa pode ser tratada como inocente por todos nós, mas, mesmo assim, pode ir para o inferno. Deus é o verdadeiro conhecedor e juiz da alma humana porque só Ele é o Salvador dela. Não são os nossos julgamentos ou abstenções que salvam pessoas, mas é o que (ou Quem) salva pessoas que ilumina e liberta nossos julgamentos e abstenções. “Comparado à eternidade, todo o resto é ninharia”, disse Turguenev. Se aqueles teólogos (redatores ou não dos textos) ‘conhecessem’ o mal que também os aprisiona e os contradiz, não julgariam como julgam os que não praticam a tal fraternidade. É uma teologia incontrita que não suporta o egoísmo dos outros, que esbraveja contra os males do mundo e da sociedade a partir de um tribunal maniqueísta que julga, mas não tem o poder de curar, nem salvar.
c) O texto, como visto, é maniqueísta: de um lado os bons e de outro os maus. Aos teólogos que o redigiram só lhes falta um requisito para se igualarem aos seus julgados: ocasião. Cada um de nós não é melhor que Barrabás, Pilatos, Judas, os fariseus, os saduceus ou quem quer que seja e que esteve lá, naquela fatídica sexta feira crucificando Jesus. Estamos todos enlaçados no e pelo mal. Sua magnitude é tão grande que reverbera negativamente e corrói nossa vida individual e social. Talvez a miserabilidade da teologia que inspira muitos teólogos esteja justamente no fato de terem aprendido, com presteza, a julgar os males cometidos pelos outros, a indicar como os homens e as mulheres devam se portar, mas de serem nulos em capacitá-los à justiça e à santidade. Tais teólogos sabem definir a fraternidade e a justiça, porém se mostram incapazes de as praticar. São moralistas. Quando alguns discípulos perguntaram a Jesus “onde moras?” Ele lhes respondeu: ‘Vinde e vede’. A pergunta poderia se dirigir aos teólogos da fraternidade: onde morais? Mostrai-nos a linda fraternidade que viveis e ficaremos convosco ou perto de vós para também dela aprendermos.
Serve de exemplo, porém, um pequeno detalhe que delimita as fraquezas fraternas: muitas Igrejas estão fora do chamado ecumenismo (pois a Campanha da Fraternidade é ecumênica). Por quê? Porque não se enquadram na mesma visão teológica. A dificuldade em ouvir e respeitar opiniões e posições distintas não reside só entre os que vivem do outro lado do rio, mas começa no interior da própria margem teológica proclamada.
A autêntica vida fraterna, como afirmei em outro artigo (neste generoso espaço cedido por Percival Puggina), não vem de graça. Vem da Graça. Tem um custo alto: o sacrifício do próprio egoísmo, a confiança vital no amor que vem de Cristo, a esperança no tesouro encontrado no céu. Ninguém chega à fraternidade cristã por meio de boas intenções, por informações e vontades éticas. O canto ‘Momento Novo’ (hino da CF 2021), se assemelha a outra canção “Ciranda Cirandinha’, mas vidas fraternas não se dão num passe de mágica, nem em rodas de dança ou chimarrão, nem em dados, discursos ou discussões sociológicas.
Uma frase do grande africano S. Agostinho (430 d. C.) resume o que nos consola. Diz nas suas Confissões: “Beatus qui amat Te. Beatus qui amat amicum in Te. Beatus qui amat inimicum propter Te”. Na minha pobre tradução pode significar: “Feliz quem ama a Ti. Feliz quem ama o amigo em Ti. Feliz quem ama o inimigo por causa de Ti”. Nós amamos bem aqueles que bem nos amam, mas amamos mal aqueles que nos odeiam. Amar inimigos gratuitamente é ser idiota e palhaço. Não consigo, nem quero. Podemos amar os que nos odeiam ou nos incomodam por uma simples razão: porque existe Deus. Devemos e podemos respeitar os outros e a natureza por uma simples razão: porque Deus existe. É por causa Dele que tolero os diferentes de mim. É por causa Dele que me arrisco e me disponho a amá-los. ‘Se Deus não existisse, disse Dostoievski (1881), tudo seria possível’. Se Deus não existir, escancarada seria nossa liberdade para qualquer conduta, inclusive para a malandragem, sem a necessidade, o consolo ou o concurso de subsídios teológicos ou filosóficos de ordem moral por aí esparramados.
Santa Maria, 24/02/2021