Desejo propor uma reflexão sobre o princípio da dialética hegeliana, que Marx e Engels importaram para o materialismo. Trata-se do princípio da irracionalidade, de acordo com uma análise que qualquer pessoa, mesmo não versada em lógica, pode entender sem muito esforço. Hegel e, sobremodo, Marx, seu seguidor materialista - não o único, mas aquele que produziu especulações mais arrogantes e danosas - montaram sistemas com base na negação dos princípios da não-contradição e do terceiro excluído. E, por isso, sustento que suas cosmovisões, termo que considero adequado para designar a síntese entre a pseudológica e a metafísica que erigiram, não passam de verborragia solene.
De uma sentença contraditória se segue qualquer outra sentença. Este é o chamado Princípio da Explosão. Se temos p e não p então temos c, seja qual for o c. É fácil demonstrar essa lei da lógica clássica, contra a qual Hegel investiu. Vejamos no exemplo: afirmo que serpentes são viscosas e não não são viscosas e, para efeito de raciocínio, considero que esta sentença é verdadeira. Com base no que considero, pretendo provar que a Terra é quadrada. Da afirmação de que serpentes são viscosas e não são viscosas, se segue que serpentes não são viscosas e quem não entender isto precisa urgentemente consultar-se com um psiquiatra, porque sofre de alguma disfunção cognitiva grave. Assim, Se está provado, pela aceitação da verdade da antinomia, que serpentes não são viscosas, podemos avançar para a prova terminal de que a Terra é quadrada, do seguinte modo: temos que serpentes não são viscosas. Desta forma, formulo nova sentença, desta feita, disjuntiva, a saber, ou serpentes são viscosas ou a Terra é quadrada. Daí se infere que a Terra é quadrada, porque, conforme demonstrado pela premissa que aceitamos, a saber, que serpentes não são viscosas, é impositivo concluir que a Terra é quadrada.
Ora, os defensores da dialética, como tenho afirmado, não entendem nada de lógica, porque esta singela Lei da não-contradição, se violada, trivializa qualquer teoria. O mesmo vale para o Princípio do Terceiro excluído, a saber, que uma sentença ou verdadeira ou é falsa, não havendo uma terceira opção para que compreendamos o que ela significa. Assim, a opção " a sentença s é verdadeira e falsa" é, do ponto de vista lógico, inaceitável. Por trivializar, por turno, entenda-se precisamente a consequência de que qualquer afirmativa pode ser resultante da aceitação de uma contradição. Uma teoria é dita trivializada se se depara com uma contradição. Isto a inutiliza. Mas, acentue-se bem: isto não quer dizer que todas as teorias, do ponto de vista da lógica matemática, estejam imunes a paradoxos. Não estão, como a história da ciência e da própria matemática comprovam. Se aceitamos o Princípio da Explosão, que se impõe a partir da Lei da não-contradição, não podemos, seja lá por qual motivo, continuar fazendo uso de uma teoria que implique uma contradição. Mas afirmar a imunidade à contradição é outra coisa. Ninguém pode fazer isto de forma antecipada, ou como Kant dizia, a priori. Autores contemporâneos como Quine e Popper montaram sistemas de compreensão de como funcionam as teorias com base justamente na sua característica falível; teorias são sistemas hipotético-dedutivos submetidos permanentemente a testes empíricos que podem torná-las falsas; e não podemos antever todas os possíveis desdobramentos lógicos de sua aplicação, porque não somos, ao contrário do que, acentuadamente, os senhores Hegel e Marx, pensavam, seres oniscientes que divisam, a um só tempo, todos os mundos possíveis ou todas as possíveis hipóteses que as ciências podem propor.
Não desconheço que alguns lógicos contemporâneos trabalham com o conceito de lógica paraconsistente, não-clássica. O mais destacado deles é o australiano Graham Priest. A lógica paraconsistente admite a existência de contradições, como as com que nos deparamos na linguagem corrente. Exemplos: "esta sentença é falsa" e "estou mentindo agora", que Priest chama de dialetéias. Entretanto, marxista algum pode fazer uso dos recursos conceituais desta lógica não-clássica para sustentar seu edifício de sandices. Uma coisa é admitir a existência de contradições e estabelecer parâmetros para um cálculo não-clássico. Outra, porém, é dizer que todo o ser é devir e na sua essencialidade está o conflito de opostos, como fazem os hegelianos e marxistas. Os defensores da lógica paraconsistente não afirmam que todas as coisas que dizemos ou que pensamos são contraditórias. Eles afirmam que algumas delas são. Já os dialéticos, se comprometem com um rendezvous trivialista, que pode ser resumido no seguinte antilema: tudo se segue de tudo e qualquer coisa decorre de qualquer outra coisa. O gênio de Jena, que pretendeu ter descoberto a lei motriz do Universo, na verdade desvelou uma senhora tolice. Dela partiram seguidores entusiasmados pela nova "lógica da revolução" (Engels), para cujo horizonte moral nada importava senão a higidez da totalidade em marcha incontida para sua consumação na sociedade sem classes. No caminho revolucionário, Marx e Engels já o diziam e está documentado, em correspondências e artigos na Gazeta Renana, soçobrariam pilhas de cadáveres, daqueles contra os quais era impositivo pegar em armas e daqueles outros, de nações pré-industriais, que seriam trazidos a fórceps para o seio da nova ordem comunista.
No início dos anos 60, ainda se recitava a cartilha marxiana com suas categorias não maquiladas. É certo que os partidos comunistas da época não estimulavam muito, junto aos jovens que iam buscar no movimento estudantil e nos operários, a discussão filosófica dos Manuscritos Econômico-filosóficos (1844) e de Para a Crítica da Economia Política (1859). Era mais apropriado esquematizar o pensamento marxiano em pontos-chave, por meio da pregação apostilhesca elaborada, entre outros, pela chilena Marta Harnecker (Os conceitos básicos do materialismo histórico), ela discípula de Louis Althusser e Alain Badiou. Pontos bem básicos mesmo. E tolos. Vejamos um sinal importante deles em Marx, quando este define, no Prefácio de Para a Crítica da Economia Política, as relações entre estrutura e superestrutura: "na produção social da sua vida os homens entram em determinadas relações necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a uma determinada etapa de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A totalidade destas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se ergue uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material é que condiciona o processo da vida social, política e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas inversamente, seu ser social que determina a sua consciência."
Note-se que o modo como Marx caracteriza a consciência é reducionista. O ser social determina a consciência individual. Mas o que determina o ser social? O ser material, que é o homem (gênero aqui) na sua condição natural. A afirmativa apenas desnuda a tese materialista de que somos organismos fisiológicos, em primeiríssima instância, condicionados pelo invariante impulso da autopreservação, uma ideia que Darwin desenvolveu mais tarde. Em seu desenvolvimento, a vida salta para o estágio da produção social e, como Marx não está falando de lagostas, mas do homem, especulo: seu ponto de partida antropológico é a luta pela vida (alimentação, reprodução) dos agregados humanos para inicialmente manterem-se em estado de subsistência.
Percebe-se que nesta evolução, de uma etapa material, fisiológica, para uma social, a mente cumpre papel decisivo, mas não pode ser outra coisa que não o cérebro. Nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, Marx apresentara sua crítica ao princípio de identidade de Hegel e desenvolvera a ideia segundo a qual os homens produzem a si mesmos mediante o trabalho, dali extraindo a conclusão de que é da práxis coletiva que resulta o ser humano.
Não são poucos marxistas que defendem, hoje ainda, a tese de que os Manuscritos são um texto humanista. Neste texto, ele apresenta o comunismo, como a "superação positiva da propriedade privada, enquanto auto-alienação do homem, e, por isso, como apropriação efetiva da essência humana através do homem e para ele; por isso, como retorno do homem a si mesmo enquanto homem social, isto é, humano; retorno acabado, consciente e que veio a ser no interior de toda a riqueza do desenvolvimento até o presente. Este comunismo é, como acabado naturalismo igual a humanismo, e como acabado humanismo igual a naturalismo; é a verdadeira solução do antagonismo entre o homem e a natureza, entre o homem e o homem, a resolução definitiva do conflito entre existência e essência, entre objetivação e auto-afirmação, entre liberdade e necessidade, entre indivíduo e gênero. É o enigma resolvido da história e se conhece como esta solução" (Karl Marx, Manuscritos, III, p. 8, Os Pensadores, Abril Cultural, São Paulo, 1978).
O livro é o primeiro da trilogia propriamente criítico-filosófica de Marx, que se completa com A Sagrada Família (1844) e a A ideologia Alemã (1845, ambos com Engels). Nos Manuscritos, o humanismo, que se identifica com o comunismo, é materialista, naturalista, se preferirem, e está circunscrito pela noção da dialética do trabalho alienado e de sua consequência, a propriedade privada, fonte, para Marx e Engels, de todos os males da civilização. Somente poderemos recuperar nossa condição humana depois da extinção da propriedade privada. Observo aqui, mais uma vez, que não estamos a tratar de um método de exposição de ideias, mas de uma descrição metafísica da dialética como movimento de contrários ativos na natureza e na sociedade. Marx cria, a partir da ideia de comunismo, sua própria filosofia da identidade, que ele contrapõe à de Hegel, tendo no comunismo a síntese de todas as realizações humanas ou, segundo seu léxico próprio, a superação da auto-alienação humana.
Convém destacar que, se considerarmos um espectro de discussão mais amplo, a hipótese que identifica mente e cérebro é ainda hoje muito poderosa. Poderosa, porque todos querem, em ciência, evitar lidar com entidades que não sejam materiais, ou seja, aquilo que, em última instância, nós podemos perceber pelos sentidos. Os empiristas ingleses diziam que nossas idéias, todas elas, provêm dos sentidos e que as mais abstratas delas são produtos de operações mentais. A atual escola materialista em filosofia da mente sustenta haver uma identidade entre fenômenos mentais e fenômenos neurofisiológicos, mas tem dificuldades em lidar com estas coisas que chamamos de ideias e estados mentais, como as crenças e os desejos, pela razão que apontarei logo a seguir.
Locke, que foi um grande filósofo do materialismo clássico, teve problemas ao tentar explicar a mente em seu funcionamento, porque, para isso, ele era obrigado a supor a própria mente em funcionamento, ou seja supor o que pretendia explicar. Bem lá no fundo de seus corações, os materialistas sabem, que estão errados, porque a mente não é algo que podemos simplesmente reduzir ao cérebro e este não pode simplesmente ser discernido pela neuroanatomia. Sua complexidade não é similar a de uma engenhoca sofisticada.
Teses materialistas esfarelam-se pelo reducionismo. Uma máquina fisiológica, que, por hipótese, funciona segundo o modelo conexionista neurológico-matematizável, não pode gerar a si mesma e, muito menos, pode gerar a matemática que a põe em operação. O problema da origem da máquina e da origem de seu programa é demasiado intrincado para ser abordado por um enfoque materialista, para o qual o surgimento da vida, é na mais branda das hipóteses, ocasional. Além disso, se pensarmos a vida como mera matéria, que razão haveria para nos preocuparmos com questões tais como o sentido da vida, o valor do humano, a beleza de uma paisagem ou a inefabilidade da angústia?
Marx não se deteve nestes aspectos, dando-os por inabordáveis. Ele era, segundo Eric Voegelin, um trapaceiro intelectual. O reino da necessidade é tudo para a crítica marxiana. O reino da liberdade não está aqui. Para ele, as relações inter-humanas (relações de produção), são necessárias e não dependem da vontade de ninguém em particular, mas das etapas em que as forças produtivas se encontram, estas moldando a consciência dos indivíduos. Ideias e estados mentais, como os estados conscientes - Marx chama tudo isto de consciência - no entanto, são, para dizer o mínimo, dificilmente redutíveis a estados materiais. Como os demais materialistas, Marx tem que lidar com alguns problemas. Exemplo: estados da mente são intangíveis, dificilmente pode-se alegar que estão situados no espaço físico. Além disto, possuem muita mobilidade, de modo que não há nada de implausível na hipótese de que duas ou n pessoas podem ser portadores da mesma crença, por exemplo, mesmo que se encontrem em distintos estados neurofisiológicos. No que se segue, mostrarei como certas características da mente fazem da tese materialista de Marx um rebotalho em termos metafísicos.
Força produtiva, para Marx, era trabalho e máquina ou, se quiserem hoje, aparato tecnológico. A roda, a máquina a vapor, o motor a combustão criam novas etapas das relações humanas. Para ele, tais relações eram necessariamente determinadas, significa dizer, involuntárias e se davam à revelia do indivíduo. Neste ponto, temos o problema: se a consciência do sujeito se define pelo papel que este cumpre no contexto das relações de produção de seu agrupamento ou agregado social, ele, em nível psicológico, não tem como se desvencilhar deste papel. Se é operário, suas ideias têm de ser as de um operário, se é burguês, as de um burguês. Da mistureba de antropologia, sociologia e materialismo fisiológico (que é uma premissa oculta no argumento), surge o problema: como Marx explica o seu próprio pensamento, aquele que ele diz ser determinado pelo modo de produção material?
Determinado é uma palavra forte. É o mesmo que forçado. Logo, Marx, que era um advogado e jornalista, filho de funcionário público e que nunca entrou numa fábrica, não poderia ter elaborado a ciência proletária. Não é, afinal, o ser social, subdeterminado pelo ser material, que determina a consciência? Não é a estrutura (a totalidade das relações de produção) que determina a superestrutura (o aparato político e jurídico da sociedade)? E onde estava o ser social de Marx, ou de Engels, que era endinheirado e que, como passatempo, tinha o hábito de caçar raposas? Marx travou na mobilidade das ideias, não se deu conta de que um sistema de crenças consistente, seja em termos de filosofia moral, seja em nível de ciência dura, ultrapassa o que ele chamou de ideologia e que proposições universalmente aceitas podem ser teoricamente elucidativas, independentemente da "condição de classe" de um indivíduo. Um argumentador marxista, para contraditar, poderia alegar, neste ponto, que o que vale para uma classe não vale para todos os membros desta classe. Marx era pequeno burguês de origem, mas tinha instrução suficiente para superar esta condição e deslindar a mentalidade obreira. É o enfoque de Gramsci sobre os intelectuais. Marx tinha os pés na burguesia, mas a cabeça no proletariado. Com isto, entretanto, o argumento, aquele segundo o qual as relações de produção determinam a consciência, se autodestrói. Elas não determinam mais, podem no máximo influenciar, mas não além disso. Assim, tudo desaba na hipótese da determinação. Se aduzirmos à análise deste ponto a crítica do materialismo, então torna-se sem dúvida inevitável jogar fora todo o marxismo.
As tentativas neomarxistas e freudomarxistas, a chamada Teoria Crítica da Escola de Frankfurt ou a hipótese dos aparelhos ideológicos de Althusser, são tentativas heroicas de sustentar a tese de que, em que pese a determinação, a superestrutura injeta valores e conceitos da classe dominante na classe dominada. Libertar a consciência do proletariado- e isto o próprio Marx dizia- exigiria não apenas uma crítica da superestrutura que o oprime, mas também a clarificação dos interesses e valores genuínos na classe operária. Tarefa político-revolucionária, difícil e jamais levada a cabo com êxito pelos marxistas no mundo real, porque a esmagadora maioria dos operários, ao longo da história, insiste em permanecer "acrítica" com relação àqueles que seriam, segundo Marx, seus legítimos interesses.
Em outras palavras, eles nunca estiveram nem aí para o palavrório revolucionário, para não falar do metafísico, este opaco para o leigo, quanto mais para o homem que vive, segundo Marx, sendo explorado no trabalho e que não tem tempo para instrução sofisticada. Gramsci tentou aqui fazer uma ponte entre esta instrução, que é típica dos intelectuais, e a "classe" operária. Um intelectual orgânico, que entende as contradições do capitalismo, deve poder ser capaz de ajudar "as massas" a entendê-las também. É preciso que estes intelectuais estejam presentes nas instituições existentes, na educação principalmente, para auxiliar a gente simples a ultrapassar a fase que ele chamava de "filosofia primitiva do senso comum". Gramsci é o autor que instrumentaliza o marxismo, a filsofia da práxis como ele o chamava, para os intelectuais petistas. O esforço dele, assim como o dos neomarxistas, está atado às amarras da dialética hegeliana e, por isso, descontado o fato de que se mantém no plano mental de um Tarso Genro ou de uma Marilena Chauí, nas democracias representativas, a tal praxiologia marxiana pariu apenas revoluções de rebeldia junto a estudantes europeus que misturaram, no final dos anos 60, elementos de rebeldia e utopia, sexo livre, drogas e rock and roll. Tudo se reduziu a um culto enfantiano. Mas, em favor dos insistentes marxistas, não se pode esquecer das qualquer coisa se segue de uma antinomia, inclusive o ser, por negação, do nada (é incrível isto, mas Hegel o disse). Assim, os hoje seguidores de Marx, dentro do PT e nos demais partidos de extrema esquerda, pulam por sobre as montanhas de mortos que suas idéias implantadas à força produziram.
Vejo nisso tudo mais um problema, um problemão em verdade, para eles, além do trivialismo, que é a desqualificada hipótese de que todas as teorias são antinômicas. E penso que é por este tipo de pregação, que ignora a mobilidade e a intangibilidade de estados mentais e que a todo instante mutila a si mesma, que nada no comunismo foi ou pode vir a ser experimentado com suavidade. Na história, só conhecemos comunismo empregado na base da força, mais anda, da força furiosa, da brutalidade opressiva.
* Possui graduação em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1982), mestrado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1989) e doutorado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1998).