• Eça de Queiroz
  • 21/01/2022
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O POVO

 

Nota do editor do site: Este artigo do grande escritor português parece feito sob medida para denunciar poderes de Estado que vivem na opulência, abusam da posição que ocupam, se autoconcedem facilidades, preservam injustiças e cultuam a impunidade como regra de ouro da vida política.

Eça de Queiroz

 

Há no mundo uma raça de homens com instintos sagrados e luminosos, com divinas bondades do coração, com uma inteligência serena e lúcida, com dedicações profundas, cheias de amor pelo trabalho e de adoração pelo bem, que sofrem, e se lamentam em vão.

Estes homens são o Povo.

Estes homens, sob o peso do calor e do sol, transidos pelas chuvas, e pelo frio, descalços, mal nutridos, lavram a terra, revolvem-na, gastam a sua vida, a sua força, para criar o pão, o alimento de todos.

Estes homens são o Povo, e são os que nos alimentam.

Estes homens vivem nas fábricas, pálidos, doentes, sem família, sem doces noites, sem um olhar amigo que os console, sem ter o repouso do corpo e a expansão da alma, e fabricam o linho, o pano, a seda, os estofos.

Estes homens são o Povo, e são os que nos vestem.

Estes homens vivem debaixo das minas, sem o sol e as doçuras consoladoras da Natureza, respirando mal, comendo pouco, sempre na véspera da morte, rotos, sujos, curvados, e extraem o metal, o minério, o cobre, o ferro, e toda a matéria das indústrias.

Estes homens são o Povo, e são os que nos enriquecem.

Estes homens, nos tempos de lutas e de crises, tomam as velhas armas da Pátria e vão, dormindo mal, com marchas terríveis, à neve, à chuva, ao frio, nos calores pesados, combater e morrer longe dos filhos e das mães, sem ventura, esquecidos, para que nós conservemos o nosso descanso opulento.

Estes homens são o Povo, e são os que nos defendem.

Estes homens formam as equipagens dos navios, são lenhadores, guardadores de gado, servos mal retribuídos e desprezados.

Estes homens são o Povo, e são os que nos servem.

E o mundo oficial, opulento, soberano, o que faz a estes homens que o vestem, que o alimentam, que o enriquecem, que o defendem, que o servem?

Primeiro, despreza-os ao não pensar neles, não vela por eles; trata-os como se tratam os bois; deixa-lhes apenas uma pequena porção dos seus trabalhos dolorosos; não lhes melhora a sorte, cerca-os de obstáculos e de dificuldades; forma-lhes em redor uma servidão que os prende e uma miséria que os esmaga; não lhes dá protecção; e, terrível coisa, não os instrui: deixa-lhes morrer a alma.

É por isso que os que tem coração e alma, e amam a Justiça, devem lutar e combater pelo Povo.

E ainda que não sejam escutados, tem na amizade dele uma consolação suprema.

*       Reproduzido do excelente “Recanto das Letras” - https://www.recantodasletras.com.br/