RESUMO
Há uma relação entre a ruptura europeia com a doutrina agostiniana da separação dos poderes religioso e secular, no século XVI, e o crescente avanço do poder civil sobre a esfera privada da vida dos indivíduos ao longo dos últimos cinco séculos. A sistematização intelectual na qual esse avanço se insere é denominada religião civil, que é a busca pela concentração, nas mãos das autoridades seculares, de poder decisório sobre todos os aspectos da vida dos indivíduos. Na primeira metade do século XX, tal avanço foi viabilizado principalmente pela agência estatal, em particular nos países que adotaram alguma variedade de teologia civil revolucionária derivada do comunismo ou do nazi-fascismo. Desde o fim da II Guerra Mundial, e sobretudo a partir de 1990, o papel que desde o advento da Era Moderna coube ao Estado no avanço da religião civil e no cerceamento das liberdades civis tem sido paulatinamente transferido para burocracias internacionais, organizações não-governamentais e grupos difusos que têm por objetivo a imposição de um modelo autoritário de sociedade mediante a manipulação do discurso e do fluxo de ideias. Esse movimento, denominado globalismo, deriva do comunismo, é visceralmente anti-nacionalista e perfaz a representação contemporânea da ideia de religião civil.
Palavras-chave: Religião Civil; Teologia Agostiniana da História; Globalismo; Comunismo; Nacionalismo
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A origem do conceito moderno de religião civil remonta ao início do século XVI, quando a consolidação das monarquias absolutistas europeias e as consequências políticas relacionadas à Reforma protestante levaram ao progressivo abandono da construção agostiniana das Duas Cidades - a de Deus e a dos homens - erigida por Santo AGOSTINHO n’A Cidade de Deus. Exercício intelectual sem par na história humana, essa obra é, entre outras coisas, a sistematização intelectual da separação entre o poder atemporal (a Cidade de Deus) e o poder temporal (a Cidade dos homens), substrato da cosmovisão cristã, cuja síntese está contida em excerto atribuído a Jesus Cristo pelos Evangelhos de Lucas, Marcos e Mateus: “Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”.
A separação entre Igreja e Estado não é uma contribuição iluminista, mas um elemento fundacional da visão de mundo cristã. Seu impacto na compreensão greco-romana das relações entre religião e política foi severo, pois nenhuma tradição intelectual da Antiguidade Clássica se ocupara de estabelecer separação entre o poder temporal e o atemporal em qualquer medida, muito menos da maneira binária anunciada pelo Cristianismo, que, ao reconhecer o Estado como entidade política, imediatamente o dessacraliza. É à luz da doutrina agostiniana das Duas Cidades, aliás, que podemos entender a ausência de teocracias – isto é, a subordinação do poder secular ao poder religioso, conceito que não tem nenhuma relação com o de Estado confessional – no Ocidente cristão, enquanto seu antípoda, o cesaropapismo – a subordinação do poder religioso ao poder secular – não é desconhecido, apesar de infrequente.
Não coube às denominações protestantes a responsabilidade pelo surgimento de uma religião e de uma teologia civis modernas: elas foram utilizadas como catalisadores pelos Estados europeus para romper em seu favor a relação medieval entre as potestades seculares e a Igreja Católica. Essa relação não foi, naturalmente, um fenômeno estático ao longo de quase 900 anos, mas uma acomodação de duas fontes de autoridade – uma atemporal e metafísica, a outra temporal e material – que, conquanto se reconhecessem mutuamente, não mantinham relações sempre harmônicas.
Tampouco foram somente os países que adotaram alguma denominação protestante como religião de Estado, tendo o soberano como chefe da Igreja Nacional, que se valeram das consequências da Reforma para submeter a autoridade atemporal ao poder do soberano secular. O aumento do poder civil e o esvaziamento das atribuições eclesiásticas na vida política e social europeia estiveram presentes no início da conversão dos Estados cujos soberanos adotaram denominações protestantes nos séculos XVI e XVII, mas a Europa católica emularia a experiência protestante a partir do século XVIII. Se Henrique VIII desmembrou a seção inglesa da Igreja Católica em 1534, denominou-a Anglicana e proclamou-se seu chefe, afastando a Inglaterra da órbita romana por intermédio de um ato formal, os monarcas franceses buscaram limitar a influência de Roma na vida social do país desde pelo menos a instrumentalização política dos huguenotes por Luís XIII e Luís XIV, num crescendo do poder secular que culminou na adoção do Estado laico durante a Revolução Francesa. Também em Portugal a influência católica na vida social declinou a partir do início do século XVIII, atingindo um ponto de inflexão com a expulsão dos jesuítas do país pelo Marquês de Pombal, em 1759. De modo e em momentos distintos, tanto o confessionalismo quanto o laicismo serviram ao propósito de inclinar a balança a favor do poder secular na Europa moderna.
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A ruptura com a ordem agostiniana iniciada no século XVI e a consequente concentração no Estado de toda a fonte de autoridade ensejou a necessidade de justificar o que o filósofo brasileiro Nelson LEHMANN DA SILVA (1985) definiu como as “exigências absolutas” dos Estados absolutistas europeus, por meio da elaboração de uma teologia civil capaz de ressignificar a autoridade antes exercida pelo poder eclesiástico. A tarefa de sistematização intelectual dessa ordem pós-agostiniana foi realizada principalmente por Thomas HOBBES em seu Leviatã, obra publicada em 1651 na qual o autor substitui jusnaturalismo agostiniano-tomista pela lei positiva, que, segundo Hobbes, contém a íntegra da moralidade.
A leitura hobbesiana da ordem social sustenta que a legitimidade do poder estatal é função de sua habilidade de preservar a si próprio, não havendo, ademais, autoridade superior à do Estado, a cuja lei positiva cabe, em última instância, definir o que é justo e o que é injusto. No Leviatã, HOBBES expõe sua visão de como deve funcionar um Estado no qual não há separação prática entre autoridades civis e religiosas. Tal separação é veementemente criticada em De Cive, tratado publicado nove anos antes (1642) de sua obra mais conhecida. No tratado de 1651, o filósofo confronta a doutrina agostiniana ao afirmar que “o Reino de Deus é uma república civil” (capítulo XXXVIII) e estabelece identidade entre religião e Estado nacional ao vaticinar que “não existe, portanto, nenhum outro governo nesta vida, nem do Estado, nem da religião, senão o temporal.” (capítulo XXXIX).
Ambas as obras de HOBBES foram influenciadas pela conjuntura europeia do período, coincidente com a etapa final da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) e com os tratados de Osnabrück e Münster. Tais instrumentos puseram fim ao conflito em outubro de 1648 e inauguraram um padrão informal de relações interestatais europeias baseadas no primado da soberania do Estado sobre seu território. A guerra, que devastou a Europa Central a dizimou entre 20% e 30% da população dos Estados alemães, constituiu o desenlace dos diferendos entre católicos e protestantes deflagrados pela Reforma no século anterior. Sua conclusão pela Paz de Westfália consagrou o princípio cuius regio, eius religio, segundo o qual os indivíduos de um Estado devem adotar a religião de seu soberano (ou praticar religião diferente da do soberano somente em ambientes privados).
A subordinação do indivíduo ao Estado também na esfera religiosa, pedra angular da teoria hobbesiana, indicou que o poder secular não estaria mais subordinado ao que LEHMANN DA SILVA define como uma “ordem moral abrangente” consubstanciado na Respublica Christiana. O Estado extraía sua legitimidade dessa ordem moral, da qual também derivava o princípio que estabelecia tanto a separação quanto a coexistência entre os poderes secular e religioso. Ao desfazer a distinção e transformar a coexistência entre ambos os poderes em identidade, a teologia civil hobbesiana entendeu desnecessária a ordem moral abrangente da doutrina agostiniana que atribuía legitimidade ao Estado, o qual passava, a partir da ruptura, a se legitimar pela própria força e a não mais ter sua esfera de atuação sobre a vida privada limitada por qualquer fonte de autoridade que lhe fosse externa.
O perigo subjacente a essa postulação essencial da filosofia hobbesiana fica claro na concepção da religião em função do Estado: a lei positiva do poder secular não teria mais quaisquer entraves que a impedissem de se imiscuir em domínios da vida privada do indivíduo. Na ordem agostiniana, a esfera privada individual estava sujeita a uma função de orientação, doutrinariamente não-coercitiva, exercida pelo poder religioso, que normalmente não recorria a expedientes de força para enquadrar os indivíduos nos preceitos de uma doutrina que era propositalmente vaga em diversos aspectos, à diferença do elevado grau de detalhe da legislação positiva. Essa concepção de religião civil defendida por Hobbes não era em nada inédita: havia sido contra ela que AGOSTINHO se levantara n’A Cidade de Deus, ao criticar a religião concebida em função do poder secular da Roma pré-cristã, desprovida de transcendência e característica das representações de religião civil da Antiguidade clássica.
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Essa ressacralização do Estado nos séculos XVI e XVII, que resgatou um aspecto significativo das cosmovisões pré-cristãs da Antiguidade, acomodou-se, sobretudo a partir da Revolução Francesa, com a ideia de sacralização do homem e da sociedade, conceito intrinsecamente secular, anti-religioso e cerne da narrativa contratualista de Jean-Jacques ROUSSEAU em seu Do Contrato Social. Também a ressacralização da sociedade não era inédita, o que não escapou a Eric VOEGELIN (2004), que enxergou nela a encarnação moderna do gnosticismo antigo. O gnosticismo moderno, em sua forma volitiva, resulta em experiências coletivas de substituição da fé religiosa pela fé dos partícipes em si mesmos. Essa percepção de autodivinização foi transplantada para a atuação institucionalizada da vontade geral de Rousseau.
O Iluminismo introduziu um conceito central antagônico à visão de mundo aristotélica da Antiguidade, mas não necessariamente incompatível com a ordem agostiniana ou com o neoplatonismo de Plotino que a informa em considerável medida (2) : a igualdade formal entre os indivíduos. O problema, como seria de esperar, residiu e continua residindo na sua aplicação e nas deturpações da proposta original: apesar de a igualdade formal ser uma ideia justa, nenhuma outra formulação foi tão deturpada na Era Contemporânea.
Foi nominalmente amparada pela ideia de igualdade formal que, na França revolucionária da última década do século XVIII, com particular ênfase ao período jacobino (1793-1794), materializou-se a vontade geral rousseauísta, que removeu da figura do monarca a legitimidade para depositá-la sobre uma minoria revolucionária. Tal minoria, conquanto reivindicasse falar em nome de uma coletividade, era brutal e respondia apenas a si própria. Como observado por HEGEL em seus Princípios da Filosofia do Direito, Rousseau não trata da substância das decisões que podem emanar da vontade geral: ele somente afirma que ela jamais se equivoca. O filósofo alemão também aduz a inevitabilidade de que dessa omissão associada à assunção de infalibilidade de um soberano coletivo (que por sua natureza difusa é irresponsável tanto no sentido jurídico quanto no prático) resultasse o terror jacobino.
Após 1848, a insuficiência da figura do monarca para encerrar em si a íntegra da legitimidade do poder foi acompanhada da paulatina substituição da teologia civil hobbesiana pelo positivismo lógico, sobretudo em sua manifestação como crença dogmática na autoridade do método científico para resolver todas as questões da realidade humana. Em um ambiente intelectual no qual a sacralização do homem e da sociedade delineava o gnosticismo moderno, o estabelecimento do positivismo lógico nos círculos intelectuais europeus do século XIX levou ao abandono do reconhecimento da metafísica como essencial à experiência humana, individual e coletiva, em benefício de materialismo em suas diversas expressões. Essa mudança de perspectiva que privilegiou o imanente em detrimento do transcendente está na raiz das convulsões autodestrutivas europeias na primeira metade do século XX.
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Há um fio condutor que vai da ruptura com a cosmovisão agostiniana na Europa do século XVI ao morticínio causado pelo comunismo e pelo nazi-fascismo no século XX? Há, mas dessa assunção não se deve inferir um passadismo simplista. Tanto a romantização quanto a demonização do passado resultam em uma compreensão deturpada de seu legado para o presente, e em nenhum outro período histórico esse reducionismo é tão prejudicial quanto na interpretação do significado da Idade Média, frequentemente associada às noções de trevas, brutalidade, estupidez e sofrimento humano desnecessário, ao ponto de o adjetivo “medieval” ser correntemente utilizado para definir um indivíduo ou um comportamento brutal, tacanho ou inculto. Associações do tipo frequentemente convivem com inverdades grotescas, manifestadas em declarações como “ciência e religião são incompatíveis”, “a Igreja Católica atrasou a humanidade em mais de mil anos” e “conservadores são terraplanistas”, entre outros comentários igualmente falsos. Reconhecer os benefícios de uma cosmovisão antiga não significa defender objetivamente sua restauração após meio milênio de transformações incompagináveis, mas expressa a intenção de identificar tanto seu legado de tradições e os vínculos de cultura e fé que atribuem sentido à vida da maior parte dos indivíduos nas sociedades ocidentais quanto algumas de suas características, artificialmente suprimidas, cujo resgate poderia concorrer para mitigar aspectos destrutivos da ordem vigente.
O principal desses aspectos, que sobreviveu ao nazi-fascismo e à forma soviética do comunismo, é o materialismo, do qual deriva o fascínio exclusivista dos intelectuais progressistas com aquilo que é imanente, empírico e sensível. O materialismo não apenas sobreviveu às ideologias revolucionárias que ele próprio engendrou, como também lançou a responsabilidade das atrocidades cometidas por regimes imbuídos de tais ideologias sobre o nacionalismo.
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Parte significativa dos equívocos contemporâneos a respeito da natureza do nacionalismo decorre de uma leitura enviesada da obra Nationalism: A Religion, do historiador norte-americano Carlton J. H. HAYES, publicada em 1960. Nela, o autor identifica as origens do nacionalismo na Reforma, que fragmentou a consciência europeia e erodiu tanto o universalismo católico quanto o localismo cultural consolidados na Idade Média. Como fenômeno moderno, contudo, o nacionalismo teria primeiro se manifestado durante a Revolução Francesa, já com características de religião civil, se propagado pela Europa no século XIX e atingido seu zênite na primeira metade do século XX, após causar duas guerras mundiais. A partir de 1945, teria entrado em declínio, sobretudo em razão do reconhecimento, pelas potências que emergiram vitoriosas da guerra contra o nazi-fascismo, de certa obsolescência dos Estados-Nações no que se refere ao tratamento dos temas político-econômicos mais relevantes do pós-guerra.
O problema da leitura isolada de Nationalism: A Religion é que ela desconsidera o fato de que a tese de HAYES segundo a qual o nacionalismo seria uma religião civil só adquire sentido à luz da tipologia elaborada pelo mesmo autor na obra The Historical Evolution of Modern Nationalism, publicada em 1931. Nela, HAYES identifica seis tipos de nacionalismo: humanitário, jacobino, tradicional, liberal, integral e econômico. A manifestação do nacionalismo como religião civil resulta de suas variações jacobina e integral, que corresponderam, respectivamente, às expressões nacionalistas na França revolucionária e aos regimes totalitários na União Soviética, na Alemanha hitlerista, na Itália fascista e em outros Estados europeus na primeira metade do século XX.
Os tipos jacobino e integral também são as variações mais diretamente contaminadas por ideologias revolucionárias de cariz totalitário e manifestações práticas expansionistas, apesar de o nacionalismo econômico também ter-se feito presente nos casos essencialmente integrais da primeira metade do século XX, quais sejam todos os Estados de ideologia nazi-fascista e a União Soviética stalinista. O nacionalismo tradicional, construção intelectual inglesa do século XVIII que teve no filósofo britânico Henry St. John Bolingbroke seu maior expoente, tem como um de seus principais fundamentos o diálogo diacrônico entre as gerações, sem que exista a necessidade de que a comunidade nacional se oponha por princípio ou se considere superior a outras comunidades similares. Ele é autorreferente no sentido de que não se define a partir da antagonização ou da hostilização dos que não pertencem à comunidade nacional, e serve de base à realidade organicista que o diplomata e escritor francês Alain PEYREFITTE (1995) define como sociedade de confiança, na qual a existência de um conjunto de referências e valores compartilhados permite, entre outros resultados possíveis, uma mobilização de recursos e capacidades cuja soma resulta superior ao total dos recursos e capacidades dos membros individuais da sociedade.
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As causas da I Guerra Mundial não podem sequer ser atribuídas ao nacionalismo integral, pois tratou-se de conflito em que um dos principais objetivos de pelo menos dois beligerantes (Áustria-Hungria e Rússia) era suprimir total ou parcialmente os incipientes nacionalismos da Europa Central e Oriental. As três potências mais diretamente envolvidas na crise de julho de 1914, na esteira do assassinato do arquiduque austríaco Franz Ferdinand, eram um império expansionista de unificação recente (Alemanha), uma monarquia absolutista com casa real de extração germânica, aristocracia majoritariamente galicizada e população de maioria eslava (Rússia) e um império plurinacional no qual uma nobreza predominantemente germânica buscava manter sob um soberano dezenas de nacionalidades da Europa Central e Oriental (Áustria-Hungria).
Essas três entidades foram à guerra em agosto de 1914, e menos de cinco anos depois nenhuma delas existia mais: no caso da Alemanha e da Áustria, o advento do Estado-Nação, que se tornaria uma (efêmera) realidade na Europa Central e Oriental somente após a I Guerra Mundial, fez de ambas campos de batalha para as ideologias revolucionárias representadas pelo comunismo soviético, pelo nacional-socialismo alemão e pelo austro-fascismo, e o empobrecimento de ambos os países na década de 1920 prepararia o terreno para o triunfo do nazismo na Alemanha e do fascismo na Áustria, no decênio seguinte. Na Rússia Soviética, a Guerra Civil iniciada em novembro de 1917 assinalaria o início de 35 anos de terror totalitário virtualmente ininterrupto, que só teria sua intensidade diminuída a partir da morte de Stalin, em 1953.
A eclosão da II Guerra Mundial remete ao nacionalismo integral, empregado pelas potências totalitárias cuja dinâmica de interação ora baseava-se na cooperação, ora na confrontação. A cooperação entre a então recém-formada União Soviética e o alto oficialato alemão insatisfeito com os termos do Tratado de Versailles (principalmente no que se referia à proibição de que a Alemanha mantivesse uma força aérea e unidades blindadas) começou ainda durante a Guerra Civil Russa: já em 1922, conforme relatado pelos historiadores russos Yuri DYAKOV e Tatiana BUSHUYEVA em The Red Army and The Wehrmacht: How the Soviets Militarized Germany, 1922-33, and Paved the Way for Fascism, as lideranças bolcheviques auxiliaram o oficialato alemão a burlar as provisões do Tratado, sobretudo por meio da permissão de uso de instalações em território soviético para desenvolvimento e testes de sistemas de armas. Essa cooperação documentada durou pelo menos até 1933, ano em que Hitler ascendeu ao poder.
O corolário da cooperação entre soviéticos e nazistas ocorreu em agosto de 1939, quando os ministros das relações exteriores dos dois países concluíram um pacto de não-agressão com validade de dez anos. O Pacto Molotov-Ribbentrop continha um protocolo secreto que viabilizava, entre outras provisões, o desmembramento de um Estado nacional independente (a Polônia) por um império transcontinental totalitário e expansionista composto por mais de cem nacionalidades e por uma potência racialista e igualmente totalitária e expansionista, cujo regime sustentava a narrativa pseudocientífica segundo a qual sua população era geneticamente superior a todas as demais.
A tipologia de HAYES, contudo, não investiga a possibilidade de que o nacionalismo integral tenha sido uma instrumentalização política e ideológica do nacionalismo tradicional, orgânico e originariamente apolítico, com o objetivo de colocar a ideia nacional a serviço do comunismo e do nazi-fascismo. No caso do comunismo, a apropriação de um discurso pseudonacionalista talhado segundo as necessidades da União Soviética stalinista é particularmente incoerente, pois toda a literatura socialista/comunista anterior à ascensão de Stalin ao poder é clara quanto à incompatibilidade entre comunismo e nacionalismo. A adaptação da variedade integral de nacionalismo à União Soviética sob Stalin foi, portanto, metodologicamente similar à instrumentalização de práticas capitalistas pontuais pela Nova Política Econômica de Lenin, no sentido de que ambas as apropriações atenderam a necessidades transitórias do regime soviético.
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A construção da narrativa difamatória do nacionalismo no pós-II Guerra Mundial pelo regime soviético e seus operadores nas democracias ocidentais só causa surpresa se ignorada a profusão de declarações da Internacional Comunista (COMINTERN, 1919-1943) que deixam clara a hostilidade do comunismo em relação ao nacionalismo. O programa de trabalho do VI Congresso da COMINTERN, em 1929, por exemplo, afirma, no capítulo que dispõe sobre o “período de transição do capitalismo para o socialismo e a ditadura do proletariado”:
A ditadura mundial somente será estabelecida quando a vitória do
socialismo tiver sido alcançada em certos países ou grupos de
países ... e quando essas federações de república tiverem finalmente
se tornado uma união mundial de Repúblicas Socialistas Soviéticas
compreendendo toda a humanidade sob a hegemonia do
proletariado internacional organizado como estado (3).
Tratava-se de uma estratégia adequada a um Estado marginal como a União Soviética de 1929, que atuava à margem formal da ordem internacional da época e cujas lideranças ainda acreditavam no triunfo do comunismo e na derradeira ditadura mundial do proletariado pela via armada. Em 1945, a União Soviética era um dos fundadores da nova ordem internacional erigida em torno da Organização das Nações Unidas, e em lugar da estratégia de concentrar todos os seus esforços no confronto direto com a ordem estabelecida nos países da Europa em reconstrução, Stalin adotou curso de ação híbrido, que incluiu desde o patrocínio soviético a grupos desestabilizadores em países da Europa mediterrânea à realização de fraudes nas eleições de países da Europa central e oriental na segunda metade da década de 1940.
Além do investimento representado pela infiltração de comunistas na gênese das organizações internacionais integrantes do sistema das Nações Unidas, sobretudo na Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e a Organização Mundial da Saúde (OMS) (4) , os soviéticos contavam com uma rede de espiões que ocupavam posições-chave em agências governamentais de países ocidentais, nomeadamente os Estados Unidos e o Reino Unido. Numa emulação comunista do sistema de porta giratória, Alger Hiss, Diretor do Escritório de Assuntos Políticos Especiais do Departamento de Estado e Secretário-Executivo da Conferência de Dumbarton Oaks (1944), foi Secretário-Geral da Conferência de São Francisco, entre abril e junho de 1945, da qual resultou a Carta das Nações Unidas. Em 1948, foi revelado que Hiss espionava para a União Soviética desde 1935, tendo ele sido condenado a cinco anos de prisão em 1950, três anos e oito meses dos quais cumpridos numa penitenciária federal na Pensilvânia. Hiss e Harry Dexter White, funcionário do Departamento do Tesouro, chefe da delegação norte-americana à Conferência de Bretton Woods e um dos principais responsáveis pelo estabelecimento do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, foram somente dois dos mais célebres altos funcionários norte-americanos a serviço do governo soviético: o antropólogo brasileiro Flávio GORDON, em sua série de ensaios intitulada Globalismo e Comunismo, publicada em 2020, identifica nomes como Solomon Adler, Virginius Frank Coe, Lawrence Duggan, Noel Field, Harold Glasser e Nathan G. Silvermaster, entre outros.
A infiltração soviética no sistema de organizações internacionais do pós-II Guerra Mundial ocorreu concomitantemente à reavaliação da estratégia de conquista do poder pela via armada na Europa Ocidental. À luz da inviabilidade, ao menos no curto prazo, do triunfo da revolução socialista a oeste do rio Elba, os soviéticos se valeram de uma estratégia de aliciamento das elites acadêmicas, midiáticas e políticas sobretudo da Alemanha Ocidental, da França, do Reino Unido e da Itália, com graus variáveis de êxito ao longo de aproximadamente quatro décadas. Essa abordagem sub-reptícia, que também foi reproduzida nos Estados Unidos (onde as atividades de espionagem soviéticas tinham importância relativa maior do que na Europa, nomeadamente nas áreas de segurança e defesa), prenunciou, no final da década de 1940, o que Gordon define como “sofisticar o linguajar”, qual seja o abandono pelos comunistas, em meados da década de 1980, da terminologia de confrontação empregada pelas organizações do regime soviético em favor da instrumentalização do vocabulário abstrato e conciliador das organizações internacionais.
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Na segunda metade do século XX, o recurso soviético às armas para implementar a ditadura do proletariado ocorreu apenas na periferia do sistema internacional do pós-guerra: América Latina, Ásia e África. Essa opção pela confrontação indireta no campo da cultura por meio sequestro intelectual da academia, da mídia e das classes políticas das democracias ocidentais foi particularmente influenciada por dois eventos: a Guerra Civil Grega (1946-1949) e o Bloqueio de Berlim Ocidental (1948-1949). Ambos confirmariam a conclusão à qual Antonio Gramsci havia chegado na prisão romana onde fora encarcerado em 1926: os comunistas não chegariam ao poder nos Estados Unidos e na Europa Ocidental como haviam feito na Rússia, isto é, por meio de um golpe de Estado arquitetado pelas lideranças revolucionárias.
A atuação da União Soviética no conflito grego foi severamente limitada pela determinação ocidental, capitaneada sobretudo pelo Reino Unido, de impedir que o Mediterrâneo oriental se tornasse um mare nostrum socialista. Esse posicionamento foi influenciado pelo golpe de Estado comunista de fevereiro de 1948 na Checoslováquia e pela eliminação, em 1947, das lideranças não-comunistas da Polônia, ambos orquestrados por Stalin e em clara violação do que fora acordado na Conferência de Yalta, em fevereiro de 1945. Desse modo, os soviéticos atuaram como aliados putativos dos comunistas gregos, que em 1949 foram derrotados pelo exército regular do país. No mesmo ensejo, a ponte aérea anglo-franco-americana em reação ao bloqueio soviético de Berlim Ocidental, que resultou na interdição dos acessos rodoviários, ferroviário e hidroviário aos setores de ocupação britânico, francês e norte-americano da cidade, indicou a Moscou que as potências ocidentais não mais tolerariam as violações soviéticas dos entendimentos alcançados nas Conferências de Teerã (novembro-dezembro de 1943), Yalta e Potsdam (julho-agosto de 1945).
Esse ponto de inflexão marca o início do abandono, pelo regime soviético, da estratégia de expansionismo por meio da ocupação territorial disfarçada de autodeterminação, padrão comum nos países da Europa Central e Oriental onde a tomada do poder por facções pró-soviéticas ocorreu nos primeiros anos imediatamente posteriores ao fim da II Guerra Mundial. Não foram apenas o desfecho do conflito grego e a reação ao Bloqueio de Berlim Ocidental: não terá escapado às lideranças soviéticas o ensaio publicado pelo filósofo alemão Carl SCHMITT em 1942, Terra e Mar: Uma Observação da História Universal, em que o autor conclui que o projeto nazista de construção de um império fundado na ocupação territorial direta condenara a Alemanha à derrota desde pelo menos a conversão da Checoslováquia em protetorado do Reich.
À exceção do que havia sobrado do parque industrial alemão no setor de ocupação soviético e em partes da Checoslováquia e da Polônia, os demais países da Europa Central e Oriental ocupados e posteriormente convertidos em satélites de Moscou eram sorvedouros de recursos econômicos. Nesse contexto, ainda que a conquista do poder pela via eleitoral ou por golpes de Estado fosse viável em países da Europa Ocidental, ela não poderia ser mantida do mesmo modo que, por exemplo, o era na Hungria ou na Checoslováquia – isto é, uma manutenção garantida essencialmente por unidades blindadas soviéticas, como os húngaros descobririam em 1956 e os checoslovacos em 1968. Se o comunismo deveria continuar se expandindo, como acreditavam tanto os próceres soviéticos quanto os partidos comunistas aos quais o Partido Comunista da União Soviética (PCUS) se vinculava pela COMINTERN e posteriormente pelo COMINFORM, seria preciso conquistar a intelligentsia dos países ocidentais. Essa mudança estratégica é a gênese prática de um discurso que, conquanto tenha sido concebido pelo regime soviético, sobreviveu a ele e serviu de base ao globalismo.
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O fato de a estratégia soviética de sedução e aliciamento da intelligentsia ocidental ter sido a principal linha de ação do comunismo a partir do fim da década de 1940 não significa que sua origem remonte ao período posterior à II Guerra Mundial. Na década de 1930, com o poder de Stalin consolidado após o expurgo de 1929-1930, ela fora experimentada nos EUA e na Europa abalados pelos efeitos da Grande Depressão, mas acabou sendo relegada a um papel relativamente menor no âmbito da grande estratégia soviética a partir da eclosão da guerra na Europa em 1939. A preferência pelo termo sedução não é acidental: seduzir vem de sub ducere, conduzir por baixo, o que, parafraseando o filósofo brasileiro Olavo de CARVALHO (2000), quer dizer que a guerra cultural empreendida pelos soviéticos no Ocidente só poderia ser exitosa se apelasse aos sentimentos mais baixos, primeiro das elites e em seguida das massas, e também aos seus vícios, concomitantemente à legitimação da perda de autocontrole e a satisfação dos desejos humanos mais primitivos.
Por outro lado, não foi somente por meio desses expedientes sedutores que se buscou enfraquecer as sociedades ocidentais: muito do êxito soviético resultou da cumplicidade voluntária de acadêmicos, intelectuais públicos, empresários do setor de entretenimento e de outras áreas e mesmo de políticos e altos burocratas. Essa frente complementaria o trabalho realizado pela rede de inteligência soviética no Ocidente.
Em nenhuma área a estratégia soviética foi tão bem-sucedida no longo prazo quanto na destruição do sistema educacional das sociedades ocidentais. Esse sucesso extraordinário está relacionado ao fato de que o edifício intelectual no qual ela está contida, a teoria crítica da sociedade desenvolvida pelos acadêmicos da Escola de Frankfurt, nasceu quase que simultaneamente ao regime soviético, em 1920, em reunião à margem do 2º Congresso Mundial da Internacional Comunista, à qual estiveram presentes, entre outros, o comunista e aristocrata húngaro György Lukacs, o então chefe da polícia secreta soviética Felix Dzerzhinsky e o agitador comunista alemão Willi Münzenberg. Na ocasião, as lideranças socialistas subscreveram proposta visando a transformar em projeto global do movimento comunista as experiências implementadas por Lukacs na Hungria, quando fora Comissário do Povo para a Educação e a Cultura do efêmero regime comunista húngaro de Béla Kun (1919).
As políticas de Lukacs contemplaram um amplo plano de descristianização daquele país europeu por meio da degradação da cultura nacional, da desmoralização das denominações cristãs e da erosão da instituição familiar, de modo a permitir a reconfiguração das estruturas mentais individuais e dos padrões de interação social magiares. Esses objetivos só poderiam ser alcançados pela corrupção do sistema educacional herdado da estrutura imperial austro-húngara, mas a República Soviética da Hungria teve breve existência (de março a agosto de 1919) e Lukacs não pode prosseguir com suas políticas de degeneração cultural deliberada em seu país natal.
O catalisador dessa estratégia foi o Instituto para Pesquisa Social (IfS - Institut für Sozialforschung) da Universidade Goethe de Frankfurt, fundado em 1923 pelo mecenas marxista teuto-argentino Felix Weil e que teve o acadêmico austro-romeno Carl Grünberg, idealizador do austromarxismo, como seu primeiro diretor. De atuação relativamente inexpressiva ao longo de seu primeiro período na Alemanha, o Instituto foi transferido para Nova York em 1934, onde funcionou vinculado à Universidade Columbia, já sob a direção do sociólogo marxista alemão Max Horkheimer, até 1951, quando restabeleceu seu vínculo com a Universidade de Frankfurt.
Em 1936, a Revista para Pesquisa Social, vinculada ao IfS, publicou extenso ensaio de HORKHEIMER, Herbert MARCUSE e Erich FROMM intitulado Estudos sobre a Autoridade e a Família, no qual os autores defenderam a ideia de que a figura paterna nas sociedades ocidentais é essencialmente autoritária, sobretudo por ser um repositório de tradições milenares, e concluem que a família patriarcal é precursora do fascismo. No ano seguinte, HORKHEIMER publicou Teoria Tradicional e Teoria Crítica, cuja proposta fundamental é o descarte de milênios de conhecimentos, experiências e tradições acumulados pelas sociedades ocidentais em benefício de uma formulação imaginária capaz de unificar o conhecimento depurado da humanidade, após extirpar dela, naturalmente, o capitalismo, a religião, a instituição familiar e outras referências características da “teoria tradicional”.
Nesse contexto, os sistemas educacionais dos Estados Unidos e da Europa Ocidental do fim da década de 1940 já podiam ser instrumentalizados pelo movimento comunista a fim de promover a subversão endógena das respectivas sociedades. Ao aliciamento das elites acadêmicas se somou o da mídia, da indústria de entretenimento e de parcelas crescentes da burocracia estatal e da classe política, quando não menos porque, a partir da segunda metade da década de 1960, a maior parte dos quadros que viriam ocupar posições ascendentes na política, no funcionalismo público, na mídia e na indústria do entretenimento, entre outros, estavam se formando nas universidades europeias e norte-americanas que, desde a década de 1930, tinham seus espaços ocupados pelo ativismo ideológico disfarçado de investigação acadêmica realizada pelos teóricos da Escola de Frankfurt.
O êxito do marxismo cultural no Ocidente se tornaria mais evidente em 1968, quando estudantes nos Estados Unidos e na Europa Ocidental promoveram distúrbios cujas consequências extrapolaram os campi universitários. Nos EUA, a redução das relações humanas ao binômio opressor-oprimido propugnado pelos frankfurtianos perverteu até causas legítimas, como a luta pelos direitos civis da população negra. Em meados da década de 1960, a agenda anti-segregacionista foi sequestrada pelos Panteras Negras, que não buscavam mais somente o fim da segregação racial e do estatuto historicamente negligenciado dos negros nos Estados Unidos: era preciso substituir o capitalismo pelo socialismo e apresentar como desprovida de mérito não apenas a presença do escravismo na formação da sociedade norte-americana, mas também os princípios, tradições e vínculos de cultura e de fé que caracterizavam aquela sociedade. Além da luta pelos direitos civis da população negra, a agenda frankfurtiana sequestrou, outrossim, as reivindicações de outros grupos minoritários nos Estados Unidos, como indígenas e latinos, e instrumentalizou seus legítimos objetivos de tratamento formal igualitário para fins desagregação e destruição social.
Na França, estudantes universitários e agitadores comunistas aliciaram entidades classistas para protestar contra o capitalismo, apesar de as duas décadas anteriores aos protestos terem constituído o auge do período conhecido como “Trinta Gloriosos” (Trente Glorieuses) que se estendeu de 1945 a 1975 e apresentou o maior salto de qualidade material de vida na história do país. Na Alemanha Ocidental, a geração beneficiária da surpreendente reconstrução econômica do país após a II Guerra Mundial (Wirtschaftswunder, ou milagre econômico), protestou contra o “militarismo” de um país cujas forças armadas tinham sua atuação circunscrita ao enquadramento estratégico da Organização do Tratado do Atlântico Norte e cujo território poderia ser submetido a até 300 detonações nucleares soviéticas nas doze primeiras horas de uma conflagração entre a OTAN e o Pacto de Varsóvia.
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Um observador atento que houvesse acompanhado os acontecimentos nos Estados Unidos e na Europa Ocidental na segunda metade da década de 1960 poderia ter, em meados do decênio seguinte, dificuldades em enxergar no projeto mais que um expediente transitório do movimento comunista. Ainda que fosse versado nos conceitos do marxismo cultural, ele poderia cotejar a decadência econômica dos EUA posterior à Guerra do Vietnã, ao abandono definitivo do padrão-ouro em 1971 e ao choque do petróleo de 1973 com a propaganda comunista que alardeava a prosperidade econômica na União Soviética e em seus satélites na Europa Oriental, América Latina, Ásia e África.
Se considerado o recorte específico de meados da década de 1970, a propaganda não era inteiramente falsa. A economia soviética nunca havia sido tão próspera quanto nos três anos posteriores ao choque do petróleo (um dos principais itens de exportação do país, cuja majoração de preços propiciou uma fonte adicional de recursos ao regime e ao movimento comunista internacional), o envolvimento de Moscou nos conflitos da descolonização afro-asiática alçou a União Soviética a uma posição de influência planetária inigualada em qualquer outro período de sua existência e o poderio militar soviético aumentou vis-à-vis o dos Estados Unidos ante a debacle norte-americana no sudeste asiático. Essa conjuntura correspondente a um período muito curto poderia de fato levar nosso observador familiarizado com o marxismo cultural a imaginar que, no médio prazo, a economia da União Soviética superaria a dos Estados Unidos. Tratava-se, aliás, de uma projeção subscrita por medalhões acadêmicos: em 1967, o economista norte-americano de orientação keynesiana Paul SAMUELSON aduziu, na sétima edição de seu Economics: an Introductory Analysis, que o PIB soviético, naquele ano equivalente a cerca de metade do norte-americano, ultrapassaria o dos Estados Unidos entre 1984 e 1997.
Num tal contexto, seria compreensível, a partir de uma leitura predominantemente economicista, interpretar o marxismo cultural como um fenômeno de menor importância, ao qual estaria reservado um papel coadjuvante quando a produção econômica da massa eurasiática orbitando em torno de Moscou ultrapassasse aquela dos Estados Unidos e da Europa Ocidental. Além disso, a brutalidade da Revolução Cultural maoísta na China, entre 1966 e 1976, e o genocídio cambojano perpetrado pelo Khmer Vermelho entre 1975 e 1979 (ideologicamente inspirado e economicamente financiado pela China maoísta) concorreram para um entendimento equivocado do marxismo cultural, particularmente no que tange ao seu método de conquista das estruturas de poder.
Pol Pot e seu entourage haviam sido fortemente influenciados pela doutrina da violência necessária do filósofo francês Jean-Paul SARTRE, segundo a qual os movimentos de libertação nacional em colônias europeias na Ásia e na África deveriam necessariamente se valer de métodos violentos para combater as administrações coloniais, uma vez que a existência mesma destas perfazia uma violência que tornava necessária outra violência que se lhe opusesse. A apologia da doutrina foi amplificada pelo psiquiatra e filósofo marxista francês Frantz FANON, em alocução intitulada Porque usamos a violência, proferida durante a Conferência de Ação Positiva para a Paz e Segurança na África, realizada no ano de 1960 em Acra, evento de relevo no sequestro dos movimentos de libertação nacional africanos pelo regime soviético.
O barbarismo dos regimes comunistas de Pol Pot e Mao Tse Tung levou a uma indissociabilidade temporária entre a ideia de revolução cultural e a doutrina sartrista da violência necessária, de modo que as investigações superficiais sobre a relação entre comunismo e cultura extraíram conclusões baseadas em um período específico do maoísmo, vagamente compreendido entre a segunda metade da década de 1960 e o fim da de 1970, e do polpotismo, entre 1975 e 1979. Sem o verniz acadêmico e a “sofisticação do linguajar” respectivamente característicos dos teóricos da Escola de Frankfurt e da cúpula soviética a partir do fim da década de 1970, essa variedade de comunismo sem preocupação com a imagem pública e imbuído de um fervor destrutivo desbragadamente sincero tinha poucos atrativos diante de uma União Soviética em seu auge material relativo e um Ocidente economicamente fragilizado e socialmente fragmentado.
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Apesar dos testemunhos de Anatoliy GOLITSYN (1984) e Euvgeny NOVIKOV (1994), ambos desertores que sustentaram ter sido a dissolução da União Soviética um evento meticulosamente planejado pela liderança do regime, há lacunas na sequência de acontecimentos concluída em dezembro de 1991 que lançam dúvidas sobre a tese dos dois ex-funcionários da KGB. É mais razoável partir da premissa de que a crise na qual a economia soviética mergulhou no início dos anos 1980 ensejou um conjunto de reações da liderança política a fim de mitigar consequências em uma multiplicidade de cenários prospectivos, de modo a preservar o movimento comunista na eventualidade do fim do Estado soviético.
Convém, a essa luz, salientar um fato cuja importância é muito superior às postulações tanto sobre o desmantelamento planejado quanto acerca da dissolução não antecipada da União Soviética: o movimento comunista global sempre foi, por sua natureza difusa e por sua flexibilidade institucional, muito mais adaptável que o regime soviético. Compreender que o movimento comunista global e o Estado soviético sempre foram entidades distintas e que, portanto, o desaparecimento do segundo não implicou no desmantelamento do primeiro, é essencial ao entendimento do papel do globalismo no mundo atual. O comunismo não é uma ideologia econômica: ele é uma religião civil que tem por objetivo permitir o exercício de controle, ostensivo ou sub-reptício, difuso ou concentrado, de um grupo restrito de lideranças “ungidas” sobre a massa de indivíduos. O marxismo cultural é a interpretação corrente majoritária da teologia civil comunista, cuja plasticidade para transcender a dimensão puramente econômica das relações de poder foi intelectualmente sistematizada pelos teóricos da Escola de Frankfurt.
É, portanto, circunstancial que, na maior parte do século XX, a expansão e o exercício de tal controle tenham sido realizados por meio dos Estados comunistas e seus aparatos de forças de segurança, e que o meio divisado para a viabilização desse controle tenha sido a estatização da economia seguida do controle totalitário da esfera privada dos indivíduos por uma elite revolucionária. Se o comunismo não fosse flexível e difuso nos meios empregados para a obtenção de controle sobre a vida dos indivíduos, ele muito provavelmente teria tido o mesmo destino do nazi-fascismo, sua ideologia-irmã. Seu êxito e sua sobrevivência são funções de sua adaptabilidade.
Não causa nenhuma surpresa, a essa luz, que as correntes majoritárias do movimento comunista tenham abandonado, na década de 1980, o princípio da estatização econômica como meio para a sobrevivência e expansão da ideologia. Trata-se de fenômeno documentado: em 1989, Mikhail Gorbachev confidenciou ao então chanceler espanhol Francisco Fernández Ordóñez que
Hoje, a essência da revolução mundial é a comunidade
Internacional unificada. Devo dizer que, ao longo dos anos,
análises políticas e ideológicas confusas – pelas quais,
em alguma medida, somos todos responsáveis – fetichizaram
a oposição entre capitalismo e socialismo... Hoje, chego
a uma conclusão assaz estranha. Desde que chegamos ao
poder, tenho lutado com os meus camaradas de partido para
fazê-los entender que a economia de mercado é o melhor
instrumento para alcançarmos nossos principais objetivos (5).
O discurso de “liberalização” do regime compaginado na perestroika de GORBACHEV em momento algum indicou que o país abandonaria o socialismo: na obra Perestroika: New Thinking for our Country and the World, publicado em 1987, o então Secretário-Geral do PCUS já afirmara que
I would like to point out once again that we are conducting
all our reforms in accordance with the socialist choice.
We are looking within socialism, rather than outside it,
for the answers to all the questions that arise. We assess
our successes and errors alike by socialist standards.
Those who hope that we shall move from the socialist
path will be greatly disappointed (6).
A declaração de Gorbachev a Ordóñez em 1989 sobre o acolhimento da economia de mercado pelo comunismo não contém nenhum elemento inédito: como aponta GORDON (2020), as relações entre os grande capitalistas e o movimento comunista remontam pelo menos à Revolução Russa, entusiasticamente acolhida, em sua etapa inicial, por figuras de proa do capitalismo norte-americano e europeu, qual exposto pelo historiador e economista britânico Anthony SUTTON nas obras Wall Street and the Bolshevik Revolution (1974) e The Best Enemy Money Can Buy (1986). Sua existência era de amplo conhecimento, e sua exclusão da narrativa oficial comunista atesta mais um êxito do marxismo cultural no que Ernesto ARAÚJO (2020) define como a “batalha pela possibilidade de difundir palavras e ideias”, ou conflito logopolítico.
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A definição de globalismo proposta por Filipe MARTINS (2019), segundo a qual o fenômeno é
“a tentativa de instrumentalização política e ideológica da
globalização com o objetivo de transferir o poder decisório
da Nação para um corpo difuso de burocratas (...) que não
respondem às comunidades nacionais mas a grupos restritos (...)
com acesso privilegiado a tais burocratas.”(7)
permite entrever, em sua estrutura e modo de operação, características que, mesmo após mais de três décadas de aperfeiçoamento de uma nova roupagem, revelam a gênese comunista da ideologia. Em primeiro lugar, a preferência por “soluções globais”, centralizadas, preferencialmente adotadas de cima para baixo e em detrimento do localismo e da descentralização próprios das democracias liberais. Em segundo lugar, o antinacionalismo inerente ao objetivo de transferir o poder de decisão dos indivíduos de uma comunidade política para burocratas cujas decisões práticas não podem ser criteriosamente escrutinadas por lideranças políticas eleitas. Por fim, o processo decisório oligarquizado, sem participação direta dos cidadãos, no âmbito de instâncias integradas por quadros burocráticos e tecnocráticos que, ademais de terem uma agenda própria, creem que a legitimidade desse mesmo processo deriva da insuficiência e/ou da obsolescência do Estado-Nação e de suas formas tradicionais de cooperação mútua. O baixo coeficiente de acesso a tais instâncias, ao contrário de ser acidental, é indispensável ao êxito do projeto globalista. Não há uma tentativa direta dos defensores do globalismo no sentido de argumentar contra a acusação de que as instâncias transnacionais são menos auditáveis pelos mecanismos dos regimes democráticos liberais: esse aspecto é comumente ignorado pela literatura especializada produzida por autores globalistas. O cientista político norte-americano de orientação construtivista Alexander WENDT (2003) sintetiza o fatalismo globalista em um ensaio de 53 páginas, sugestivamente intitulado Why is a World State Inevitable, ao declarar que “...global monopoly on the legitimate use of organized violence – a world state – is inevitable”. Essa falsa inevitabilidade do avanço da ideologia é frequentemente utilizada por seus defensores para desqualificar a priori os argumentos de seus críticos, como se opor-se ao globalismo equivalesse negar a incidência da lei da gravitação universal ou da segunda lei da termodinâmica.
Expedientes desse tipo indicam a existência de uma estratégia logopolítica sofisticada, que só pode ser contra-arrestada mediante uma compreensão ao mesmo tempo analítica e comparativa de seus fundamentos e principais propostas, de modo a habilitar aos defensores das liberdades civis e do Estado-Nação a conter o avanço globalista.
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A classificação do globalismo como a representação contemporânea da ideia de religião civil deve ser entendida à luz da descaracterização do conceito de soberania proposta pelo historiador anglo-romeno David MITRANY, principal expoente da escola funcionalista das relações internacionais. Na obra A Working Peace System, publicada em 1943, o autor afirma que “sovereignty cannot... be transferred through a formula, only through a function”, o que poderia ser alcançado por meio da criação de agências especializadas dedicadas à resolução de questões que historicamente couberam aos Estados. O funcionalismo propugna a relativização da soberania estatal em razão do que MITRANY (1975) define como “the emergence for the first time of world problems and world activities which escape the range and control of any existing political sovereignities, or of any partial combination of them”.
A defesa da transferência da soberania estatal para agências especializadas foi açambarcada pelo globalismo, que desde a criação das organizações internacionais no período posterior à II Guerra Mundial tem defendido a expansão contínua das competências temáticas dessas entidades, a bem da verdade contemplando um escopo não divisado pelo historiador anglo-romeno ou pelos primeiros teóricos funcionalistas. Nesse contexto, a crescente ingerência na esfera privada dos indivíduos, que do século XVI até meados do século XX coube ao Estado, passou, a partir da ascensão do globalismo, a ter seu exercício compartilhado entre o Estado e as já mencionadas entidades supranacionais que não estão sujeitas aos mecanismos das sociedades democráticas.
Em diversos casos, operou-se uma inusitada inversão: acossadas pela ingerência de organizações transnacionais e comunitárias, as sociedades nacionais de muitos países depositaram em seus respectivos governos eleitos as derradeiras esperanças de conter a supressão e a dissolução de seu modo de vida pela religião civil globalista. Esse fenômeno pode ser observado em formas e intensidades distintas, a partir da segunda década do século XXI, no Brasil governado por Jair Bolsonaro, nos Estados Unidos governado por Donald Trump, na Áustria governada por Sebastian Kurz, na Hungria de Viktor Orbán, na Itália de Giuseppe Conte, na Polônia de Andrzej Duda e no Reino Unido de Boris Johnson e do Brexit. Apesar de diferentes em razão das distintas compleições sociais, os governos democráticos desses países têm em comum a defesa do conservadorismo e do nacionalismo tradicional não-agressivo, apolítico e inclusivo.
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No verão de 2002, o pesquisador norte-americano John FONTE, do think tank Hudson Institute, publicou ensaio intitulado Liberal Democracy vs. Transnational Progressivism: The Future of the Ideological Civil War Within the West, no qual discorre sobre a ação concertada de organizações não-governamentais e organismos internacionais com vistas a sequestrar a agenda política doméstica nos Estados Unidos. Essa linha de ação fora decidida após tais entidades não conseguirem viabilizar suas propostas pelas vias previstas na Constituição daquele país, quais sejam o legislativo e o executivo federais, os governos e legislaturas estaduais e os respectivos judiciários estaduais e federal.
O que o autor define como progressismo transnacional é a mais completa tipificação do globalismo disponível, realizada a partir de sete características: i) a primazia da identidade de grupo sobre o indivíduo; ii) a dicotomia entre “opressores contra grupos vitimizados”, com identidades de grupo teoricamente minoritárias na condição de vítimas; iii) o proporcionalismo de grupo como definição de justiça; iv) a defesa da transformação dos valores de todas as instituições a fim de refletir o que uma minoria não-eleita de “ungidos” definir como as perspectivas dos “grupos vitimizados”; v) a centralidade do “imperativo demográfico”, quais sejam as transformações demográficas numa sociedade (no caso ilustrado por Fonte, a dos Estados Unidos), como justificativa para abandonar o paradigma inspirado nas liberdades civis para favorecer um fundado no proporcionalismo de grupo; vi) a redefinição do conceito de democracia e dos ideais democráticos, que deixam de ser baseados na regra da maioria entre cidadãos iguais perante a lei para se transformar num condomínio de poder entre grupos estruturados segundo critérios étnicos e integrados tanto por cidadãos quanto por não-cidadãos; e vii) a desconstrução das narrativas e dos símbolos nacionais por meio do questionamento da legitimidade do Estado-Nação e da nacionalidade, qualificando como “racistas” (e, mais recentemente, como “fascistas”, “supremacistas” e outras injúrias afins) o que se opõem à vilanização da Nação.
Apesar de concebida tendo em conta a situação específica dos Estados Unidos no período que se estende da dissolução da União Soviética aos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, a tipificação descreve com acuidade vários dos principais tópicos da agenda globalista no início da terceira década do século XXI. As características gerais identificadas por Fonte, ademais, não são aplicáveis somente ao conflito entre nacionalistas tradicionais e conservadores, de um lado, e globalistas e múltiplos grupos de esquerda, de outro, nos Estados Unidos. Elas estão presentes, com incidência e padrão distributivo estruturados segundo as características de cada sociedade nacional, no Brasil e em países da América Latina, da Europa, da África e da Ásia. Se elas são mais explícitas nos países com governos conservadores e simpáticos ao nacionalismo tradicional, isso ocorre porque tais governos dispõem dos meios para expor essa estratégia.
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As ideologias revolucionárias têm em comum uma dimensão propagandística que apresenta sua narrativa como inevitável e, por isso mesmo, invencível. Essa inevitabilidade pode ser inata ou adquirida.
No nazi-fascismo - intelectualmente muito menos sofisticado e versátil que o comunismo, sua ideologia-irmã -, esse traço foi adquirido e só se revelou na sequência de desafios não contra-arrestados ou exitosamente superados pelo regime ao longo da década de 1930 e início da de 1940. Tais desafios se inserem num continuum que estende vagamente da remilitarização da Renânia, em 1936, à ocupação da Europa Ocidental pelas forças alemãs, em 1940.
Até 1936, o nazismo tinha um nível de penetração relativamente incipiente junto ao alto oficialato alemão, e os êxitos alcançados ao longo da meia década seguinte só atribuíram um grau de adesão comezinho, frequentemente justificado por carreirismo, dos oficiais superiores mais influentes das forças armadas regulares (Wehrmacht) à figura de Hitler e aos princípios da ideologia. Essa adesão estava muito mais relacionada à superação temporária daquilo que o estamento militar alemão entendia como as humilhações impostas pelo Tratado de Versailles do que a um suposto fervor ideológico do oficialato regular, o que é comprovado pelo protagonismo crescente das SS Armadas (Waffen-SS) e das SS Gerais (Allgemeine SS) a partir de 1941, sobretudo na perpetração de crimes de guerra. À medida que foi se desvelando a impossibilidade de que a Alemanha vencesse o conflito, o regime nazista tornou-se cada vez mais dependente das forças paramilitares e ideologicamente fanáticas das SS, e a falácia da invencibilidade do nazismo foi se dissipando tanto para as forças regulares quanto para a população alemã. Esse fenômeno explica em considerável medida o sucesso e a celeridade da desnazificação da Alemanha no pós-guerra.
Em todas as manifestações do comunismo, a autopercepção do próprio triunfo como inevitável é inata, ao ponto de a ideologia acomodar sem maiores problemas contradições que só adquirem sentido à luz da ideia de um futuro etéreo que justifica todas as barbaridades cometidas em seu nome. Exemplos disso são a relação do comunismo com o grande capitalismo já no nascedouro da Revolução Bolchevique, o papel soviético no rearmamento da Alemanha das décadas de 1920 e 1930 e o pacto com o regime hitlerista em 1939, entre outras tantas circunstâncias que poderiam elas próprias ensejar um artigo.
O globalismo incorpora esse aspecto da narrativa ao discurso e o converte em um argumento que busca desqualificar os que se lhe opõem, manipulando o debate para transmitir a ideia de que a oposição às pautas globalistas são inválidas a priori, independentemente de seu conteúdo. A franja mais agressiva do movimento regularmente se vale de injúrias para vilipendiar os que discordam de sua agenda liberticida, tendência magnificada nos veículos de mídia e redes sociais onde se desdobra uma frente importante da disputa logopolítica travada entre conservadores e nacionalistas tradicionais, de um lado, e progressistas transnacionais/globalistas e esquerdistas de diversos matizes, de outro. Esses expedientes ofensivos e tentativamente desmoralizantes, antes de constituir um desvio, estão na raiz da ideia de religião civil, já que, como observado por ROUSSEAU, a intolerância é um dogma indispensável à religião civil (8) .
Essa dinâmica não irá mudar no curto ou no médio prazo. O que ARAÚJO (2020) define como “a batalha pela possibilidade de difundir palavras e ideias (...) controlar o fluxo do discurso” não terá um desenlace definitivo, e conquanto possa ser desejável que as duas visões de mundo cheguem a algum tipo de coexistência instável, elas não deixarão de ser essencialmente incompatíveis. O que convém aos defensores das liberdades civis, do Estado-Nação e do legado cultural e das tradições a ele associadas ter em mente é que o triunfo do globalismo, como não o foram o do império soviético na década de 1980 e o do nazi-fascismo na de 1940, não é inevitável.
NOTAS DE RODAPÉ
(1) Diplomata de carreira desde 2006. As opiniões expressas neste artigo são pessoais e não refletem necessariamente as posições do Ministério das Relações Exteriores (MRE).
(2) Não há, na obra de Santo Agostinho, elaboração que possa ser relacionada ao conceito iluminista de igualdade formal. No entanto, a doutrina agostiniana entende que a noção de justiça pode se manifestar de duas maneiras principais, a transcendente e a imanente, e nenhuma delas é necessariamente incompatível com a ideia de igualdade formal. Cf., para análises sobre o assunto e suas variações, as obras O Conceito de Amor em Santo Agostinho, de Hannah Arendt, Augustine and Social Justice, editada por Teresa Delgado, e A Short History of Distributive Justice, de Samuel Fleischacker.
(3) COMINTERN. The Programme of the Communist International. In Comintern Sixth Congress 1929.
(4) Cf. DORN, C.; GHODSEE, K. The Cold War Politicization of Literacy: Communism, UNESCO, and the World Bank. In The Journal of The Society for Historians of American Foreign Relations. April 2012.
(5) Apud GORDON, F. Globalismo e Comunismo (Parte 3). In Gazeta do Povo. 04/06/2020.
(6) GORBACHEV, M. Perestroika: New Thinking for our Country and the World. New York: Harper & Row, 1987. p. 36.
(7) MARTINS, F.G. Globalismo: teoria da conspiração ou fenômeno político observável?. In Seminário sobre Globalismo. Brasília: Ministério das Relações Exteriores/Fundação Alexandre de Gusmão, 10/06/2019.
(8) Do Contrato Social, Livro IV, Capítulo VIII.
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