Eu sou da elite. Médica. Branca. Ganho mais de dez salários por mês. Legítima coxinha. Qual dessas características me desqualifica para manifestar minhas contrariedades contra esse ou qualquer governo que seja? Ah! É médica, filhinha de papai, estudou nas melhores escolas, ganhou carro do paizinho quando entrou na faculdade, “nunca precisou pescar”... Idiotices. Não foi assim. Estudei a vida inteira em escola pública (inclusive a faculdade) e não foi por exercício de sociologia dos meus pais. E mesmo que tivesse sido dessa forma estereotipada que tanto se alardeia, uma vaga num curso de medicina não cai na cabeça da gente feito merda de pompo. Há que se ter certo mérito e esforço, por mais dinheiro e boa formação que se tenha.
O mesmo vale para grandes empresários, donos de indústrias, comerciantes, representantes do agronegócio, etc. Ninguém chegou onde chegou, sem arriscar, sem empreender, sem esforço, sem mérito. Essas pessoas não foram agraciadas por Deus com torneiras de ouro por onde jorra dinheiro fácil, como parecem acreditar tantas pessoas (até alguns ditos intelectuais) de uma puerilidade quase cômica, se não fosse ridícula. Ganho mais de dez salários. Estudei (e muito). Ainda estudo. Trabalhei e trabalho para isso. Contribuo proporcionalmente à minha renda.
Quero e exijo o bom uso do dinheiro dos meus impostos. Que esses sejam revertidos em saúde, educação, segurança pública, transporte e infraestrutura. E que eu, como toda a população, possa usufruir de tudo isso. E que o meu dinheiro, dos meus impostos, sirva para proporcionar uma educação pública de excelência a todos aqueles que não têm as mesmas condições que eu hoje tenho. Para que pobres, brancos, negros ou mestiços, disputem em pé de igualdade as vagas nas universidades. Mesmo que eu não utilize o sistema público de saúde, exijo que o SUS seja, de fato, aquele que consta na Lei Orgânica da Saúde. Universal e INTEGRAL. E não esse arremedo desumano que massacra os mais pobres e desanima os profissionais de saúde.
Quero ver o dinheiro dos meus impostos de coxinha revertidos na saúde dos pacientes do SUS. Para que meus pacientes do SUS, não tenham de esperar meses por um exame, na suspeita de um câncer. Para que eu, como tantos outros médicos coxinhas, não tenhamos de continuar lamentando todo dia um diagnóstico tardio em nossos pacientes. NOSSOS pacientes. Pois, quem olha nos olhos das pessoas para dar diagnósticos infelizes, somos nós. Não é o governo. Não são aqueles que a cada quatro anos aparecem na TV pedindo votos e vendendo mentiras. Somos nós! E nós, a elite, temos todo o direito de exigir. Pagamos, como pagam todos, e não temos retorno. Quem vende a ideia de que nós, da dita elite, somos contra bolsa família e benefícios assistenciais, ou a ascensão social dos pobres, é idiota. Aqueles que divulgam o discurso mentiroso de que quem vive em melhores condições sociais e econômicas, o faz a custa do sofrimento dos mais desfavorecidos é alienado ou cafajeste. E é mais do que hora de adjetivarmos adequadamente as coisas.
Temos sido demasiadamente coniventes com o incentivo contínuo a luta de classes em nosso país. Temos aceitado por anos que gente mal intencionada, ou meramente ignorante e doutrinariamente alienada, repita insistentemente esses descalabros nas redes sociais, na imprensa, nas escolas de nossas crianças, nas universidades, em discursos de palanque. É preciso dar o basta. A elite (e que fique bem entendido, “elite”, para os adoradores do termo, não guarda qualquer relação com a condição econômica, eles “colam” o “elite” em quem quiserem, da forma que bem entenderem) precisa exigir mais, e se manifestar mais. Ganharemos nós, os coxinhas, com nossos impostos melhor investidos? Com governos mais responsáveis? Com políticos menos corruptos? Com o crescimento econômico? Com toda certeza. E ganharão os miseráveis, os muito pobres e a classe média baixa também. Só cegos e idiotizados é que não são capazes de enxergar isso. Que fiquem eles com a guerra, que há de ser perdida, da luta de classes. Fiquemos nós com a luta por um país decente para todos. Inclusive para eles. Kátia Filgueras.
* Médica. Erechim/RS