Recebi de um amigo português, pela internet, uma historieta singela, que convida a uma reflexão muito profunda, acerca de um problema filosófico. Trata-se do seguinte diálogo imaginário entre dois bebês, ainda no ventre materno:
- Tu acreditas na vida após o parto?
- É claro. Tem que haver algo após o parto. Talvez nós estejamos aqui para nos preparar para o que virá mais tarde.
- Disparate! Que tipo de vida seria essa?
- Eu não sei, mas haverá mais luz do que aqui. Talvez nós possamos andar com as nossas próprias pernas e comer com as nossas bocas. Talvez tenhamos outros sentidos que não podemos entender agora.
- Isso é um absurdo. O cordão umbilical fornece-nos nutrição e tudo o mais de que precisamos. O cordão umbilical é muito curto. A vida após o parto está fora de cogitação.
- Bem, eu acho que há alguma coisa e talvez seja diferente do que é aqui. Talvez a gente não vá precisar deste tubo físico.
- Além disso, se há realmente vida após o parto, então, por que ninguém jamais voltou de lá para contar como é?
- Bem, eu não sei, mas certamente vamos encontrar Mamãe e ela vai cuidar de nós.
- Mamãe? acreditas mesmo em Mamãe? Isso é ridículo. Se Mamãe existe, então, onde está ela agora?
- Ela está ao nosso redor. Estamos cercados por ela. Nós somos dela. É nela que vivemos. Sem ela não poderíamos existir.
- Bem, eu não posso vê-la, então, é lógico que ela não existe.
- Às vezes, quando estás em silêncio, se te concentrares e realmente ouvires, vais perceber a presença dela e ouvir a sua voz."
Essa historieta, possivelmente inspirada no mito da caverna, de Platão, foi composta por um escritor húngaro, cuja identidade meu amigo não soube informar. A indagação filosófica profunda que ela desperta é sobre a racionalidade e razoabilidade da crença religiosa. Muita gente supõe que crer em Deus é questão de pura fé e não depende da razão humana.
Na concepção religiosa, pelo contrário, Deus se faz conhecer por meio das obras que criou, de tal forma que, por meio destas se pode e se deve racionalmente chegar ao conhecimento de sua existência e até mesmo dos seus mais altos atributos. Assim, uma profissão de fé ateísta não só é contrária à razão, como também não pode ser isenta de culpa moral. É o que diz o Apóstolo São Paulo: "O que se pode conhecer de Deus é-lhes (aos homens maus) manifesto, pois Deus lho manifestou. De fato, as coisas invisíveis dele, depois da criação do mundo, compreendendo-se pelas coisas feitas, tornaram-se visíveis, e assim o seu poder eterno e a sua divindade, de modo que são inescusáveis". (I Rm 1, 19-20)
No mesmo sentido, lê-se no Livro da Sabedoria: "Não passam de vaidade todos os homens em que não se encontra a ciência de Deus, e que pelos bens visíveis não chegaram a conhecer aquele que é, nem, considerando as suas obras, reconheceram quem era o Artífice." (Sab 13, 1-5)
Comentando conjuntamente esses dois trechos bíblicos, o exegeta Cornélio a Lapide realça a tese de que a razão humana pode chegar, pela contemplação das obras criadas, ao conhecimento de Deus e de seus atributos: "É possível, pela luz natural, saber que Deus é uno, é livre e exerce sua providência não somente de modo universal, mas sobre cada homem em particular", afirma textualmente.
Refere a seguir, em abono dessa tese, a autoridade de numerosos autores cristãos, como São João Crisóstomo, Santo Ambrósio, São Beda, Santo Anselmo, Dionísio e Santo Agostinho. E, depois de citar esses autores cristãos, mostra que também entre os filósofos pagãos a mesma possibilidade existia: "Pela mesma experiência aprenderam e ensinaram os Gentios: pois Trimesgistro diz que o mundo é um livro da divindade e um espelho dos deuses, no qual o próprio Deus se reflete e no qual, como supremo Apeles, claramente se exprimiu e se pintou.
Por esse livro não somente estudaram Santo Antão, como dele atestou Atanásio, e os outros habitantes do deserto; não somente São Bernardo, São Francisco e os outros Santos; mas também Platão, Sócrates, Aristóteles e todos os Filósofos. O mesmo conheceu e ensinou Orfeu, quando disse: `A máquina do mundo é musica e harmonia admirável, que prega e louva a Deus, pois os céus manifestam a glória de Deus´. Tais coisas são, também, a música dos céus, pregada por Pitágoras. Por isso Filon de Alexandria, no livro Da unidade de Deus e do duplo templo, chama o mundo de templo de Deus" (Commentaria in Scripturam Sacram, t. XXVIII – Divi Pauli Epistolarum, p. 51).
*Jornalista profissional e historiador, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.