• Valdemar Munaro
  • 27/11/2022
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Desonestidades ignominiosas

 


Valdemar Munaro
        Perplexos diante dos últimos acontecimentos, brasileiros vemo-nos num beco de alternativas dolorosas: ou urnas adulteradas roubaram escandalosamente nossas eleições ou abismos imorais ocultos se descortinam ante nossos olhos. Sem a primeira não teríamos a segunda, sem a segunda não teríamos a primeira. Urnas prostituídas regurgitam a podridão moral e espiritual que medra parte da sociedade e vice-versa.

Diabólicas circunstâncias mostram uma trupe avarenta e ávida por governar, fraudulentamente, o Brasil outra vez. Entre seus protagonistas, porém, não há um só membro decente. Todos, literalmente todos, já ofenderam o povo brasileiro, feriram sua fé, minaram sua confiança sem jamais manifestar arrependimento ou pedir perdão. Corroídos, coadjuvam-se na participação e cumplicidade de ações quadrilheiras inescrupulosas que assaltaram a nação. Pior, sem lastros de vergonha e remorso, apresentam-se democratas honestos e justos. Estarrecidos, vemo-los à espreita de novas investidas quando, na verdade, há muito, deviam ser banidos da política. Coisa enigmática e paradoxal é brasileiro confiar em ladrões e dar a eles as chaves do cofre e da segurança. Difícil entender se estamos sofrendo algum delírio, masoquismo ou alguma 'síndrome estocôlmica'.

Iletrados e 'inocentes' merecem nossa compaixão, mas esclarecidos e bem situados, não há desculpas. Só uma razão explica: as rupturas de caráter se aproximam muito das loucuras e psicopatias. O escritor polonês, Czeslaw Milosz, diplomata, refugiado e vítima do stalinismo, disse em 'Mente Cativa' (1951), que os regimes tirânicos escravizam homens e mulheres não só por meio do medo e do terror, mas especialmente por meio de ideias. Os enfeitiçados se tornam incapazes de notar a prisão que os encarcera.

'Pas d'ennemis à gauche', afirmava James Burnham sobre esquerdistas. Os inimigos, para estes, situam-se à 'direita' do rio, jamais à esquerda. A vitrine petista (e seus aderentes), por exemplo, vê inimigos unicamente no lado conservador. Em futuros expurgos, talvez entendam, que o engolfamento prejudicará a todos e não apenas os desafetos. Se tais esquerdistas auscultassem, com honestidade, expurgados do stalinismo, refugiados venezuelanos originalmente chavistas, raros marxistas arrependidos, provavelmente, não se apegariam ao 'nojo' pela direita e adeririam à verdade que salva a todos.

Incrédulos, notamos um feitiço catatônico estender-se às mentes brasileiras paralisando raciocínios, catapultando artes e artistas, corroendo políticos, jornalistas e religiosos, amansando formadores de opinião e professores, desonestando intelectuais e empresários, cooptando sindicatos, seduzindo inocentes a ponto de fazê-los 'se imaginar' no interior do 'éden' socialista utópico, 'in fieri'. Cavernas platônicas, com efeito, exercem esse poder mágico em prisioneiros que consideram loucos os sensatos e sensatos os loucos. Tal como ocorreu aos de Emaús (Lc 24), muitos reconhecerão tarde o engano.

À íntima constituição de uma 'personalidade' mistura-se à honestidade (do latim 'honoris', honra). Honesto é o incapaz de atos malvados, ilegais ou ilícitos, seja pela observância de princípios jurídicos e morais, seja pelo senso de justiça radicado na alma. Honrada é a pessoa que inspira confiança. Nela fazemos acordos e negócios, dialogamos e construímos amizades. Condutas honestas, portanto, não se regem por ondulações oportunistas nem conveniências de última hora.

Na 'honestidade' edificamos a atividade intelectual, a civilidade, o nosso agir. Aristóteles (322 a. C.), genialmente compreendeu e afirmou quanto é importante e necessário respeitar princípios 'não contraditórios' sem os quais não poderíamos construir ciências, lógicas, nem vida social.

emonstrando sua implacável urgência, o estagirita concluiu, tacitamente, que a honestidade intelectual, acima de qualquer outra, impõe o imprescindível dever de respeitar o princípio de não contradição. Sem isso, não se salvaguarda a saúde mental.

Para Aristóteles é terminantemente vetado ao raciocínio afirmar e negar, ao mesmo tempo e sob mesmo aspecto, alguma coisa de qualquer coisa. Ou melhor, se, sob determinado aspecto e ao mesmo tempo afirmássemos e negássemos coisas contraditórias, incorreríamos em insensatezes. Aquele que desrespeitar o princípio de não contradição, portanto, não merece credibilidade.

Entretanto, apesar de Aristóteles realizar esse nobre trabalho de iluminação e demonstração do funcionamento normativo da vida intelectual (condição sem a qual não haveria construção científica ou ética), de modo escandaloso, a modernidade 'iluminada' pelo pensador alemão G. William F. Hegel (1830) ousava desdenhá-la. Professor de filosofia em Berlim, Hegel foi e é, certamente, o maior opositor da metafísica e da lógica aristotélicas em todos os tempos.

A doutrina hegeliana, sorrateiramente, aceita e abraça a contradição como lei necessária e positiva à atividade racional e científica, bem como à explicação do dinamismo natural e histórico do mundo. A contradição, vista e reconhecida como escândalo no interior do organismo lógico e científico aristotélico, na filosofia hegeliana passou a ser tratada como princípio nuclear, norteador e revelador do real. A teoria cosmológica e metafísica de Hegel legitima a negação da afirmação e a afirmação da negação num simultâneo e único nicho epistemológico. Em tudo o que vemos e em tudo o que pensamos, segundo Hegel, a contradição constitui verdadeiro princípio movente dinamizador e necessário, raiz do progresso e da evolução de tudo o que existe.

Assim, desdenhando da exigência lógica basilar pelo respeito ao princípio de não contradição, Hegel inaugurou um novo 'modus operandi' racional. Poderíamos designá-lo de revolucionário. Seu esforço foi fazer ideias serem iguais a realidades e realidades iguais a ideias. O pensamento, para Hegel, tornou-se o próprio mundo e o mundo, o próprio pensamento 'Tudo o que é racional é real e tudo o que é real é racional', dizia. Daqui nasceu uma identidade entre o ser e o pensar. Tudo é o mesmo. Se a realidade é o pensamento e vice-versa, então devemos só pôr em prática o que pensarmos e pensarmos o que pomos em prática. Hegel transmutou ideias em ideologias e ideologias em ideias.

Desse modo, tornou-se o inspirador e diagramador de todas as concepções intelectuais revolucionárias contemporâneas. Marx foi seu discípulo mais consequente, com muitos outros. As ideias, com Hegel, deixam de obedecer a coerências lógicas para receber o selo da veracidade não da relação com as coisas (como pensava S. Tomás), mas do puro arbítrio emocional e intelectual. Doravante não importa mais a coerência lógica, mas interessa a utilidade e a eficácia das mesmas.

Se as regras lógicas deixam de vigorar (especialmente o princípio de não contradição), desaparece o ordenamento racional e as atividades intelectuais adquirem asas libertinas. Os conceitos ou ideias, não mais nutridos e guiados por princípios não contraditórios, passam a ser dinamizados e dinamitados pelas emoções. O fato filosófico hegeliano, portanto, dá margem e vazão a caos morais, imposturas científicas, aberrações intelectuais, fundamentalismos irracionalistas, contradições estarrecedoras e paradoxais, absurdos relativistas de toda ordem. Conveniências oportunistas, a partir de então, escancararam portas para fazer vigorar desonestidades intelectuais vergonhosas e chocantes.

Há quase cem anos, 1927, Julien Benda, no seu célebre 'La trahison des clercs' (traduzido, "A traição dos intelectuais') advertiu-nos sobre a carrada de intelectuais encharcados de emoções políticas que entopem artérias racionais e transformam pensadores e cientistas em militantes. O engajamento político ideológico produziu a traição que pôs fim à jornada sincera e honesta pela busca da verdade.

Contradições, nestes últimos tempos, se proliferaram e se agigantaram como zumbis, adquirindo feição cara de pau de seus porta vozes. Comunicadores e líderes públicos, intelectuais e jornalistas, aos cântaros, reverberam desonestidades racionais. São democratas apoiando ditadores, feministas abrigando estupradores, veganos vestindo couros animais, pacifistas promovendo guerras, comunistas trajando capitalismos, capitalistas idealizando comunismos, entendedores de economias mundiais fracassados nas domésticas, protetores de crianças defendendo pedófilos, glorificadores da racionalidade professando racismos, arautos de verdades mentindo, homossexuais venerando seus assassinos, cristãos perfilando ateísmos, demônios transvestindo-se de angelical aparência, etc.

As desonestidades estão por toda parte. A história registra muitas. Martinho Lutero (1546), exemplo, pelejou mais para encontrar álibis à sua própria fraqueza e travessura do que para iluminar o Evangelho. E. Michael Jones sinaliza que o 'rebeldia' luterana ante o celibato tinha mais a ver com incapacidades pessoais de Lutero (atormentado por impulsos e vícios sexuais) do que com reais questões relativas à castidade e à continência. Martinho martelou a virtude que lhe era exigente para afagar o vício que lhe era conveniente. Desprezou a inoportuna castidade que lhe incomodava para estimar a fraqueza que lhe convinha. Pela rebeldia conveniente, expulsou o preceito exigente. Pela conveniência resolveu a exigência.

Algo parecido se pode observar nos estudos de S. Freud (1939) acerca dos mitos edípicos. Estes tinham mais a ver com a tentativa de justificação do incesto real vivido com a cunhada do que com hipóteses e observações científicas verificáveis. É claro que o drama pessoal de Freud se esconde na psicanálise inteira e contamina seu trabalho. Freud e G. Jung, segundo E. Michael Jones, estendiam as sessões terapêuticas (em número) não tanto porque amavam e desejavam aprimorar os cuidados de seus pacientes, mas, antes, para engordar suas contas bancárias. Esticando a corda para angariar prestígio e ascendência social, é de se perguntar se a proclamada compaixão psicanalítica dos seus inventores não estivesse contaminada de hipocrisia mais do imaginado.

Desonestidades frequentes também se veem em outras frentes. Jornalistas e repórteres enviados à Nicarágua para noticiar a guerra civil em curso, nos anos de 1980, exaltavam, excitados, as maravilhas e encantos daquele país. Quando, porém, a revolução sandinista terminou e impôs forçosa calmaria àquele povo, acalmou-se também o entusiasmo daqueles correspondentes. Entediados, num lapso, o encanto desapareceu, o emoldurado nas palavras mentirosas. Moral: outra coisa os motivava, menos o amor real por aquele país e sua gente.

Igual sina se deu com jornalistas 'profundamente engajados' nos dramas indochinos de triste memória (Laos, Vietnã, Camboja... do século XX). Conflitos cessados, cessaram também os engajamentos. A guerra do Vietnã, da qual 'todos' se interessavam, durou 10 anos e causou a morte de 300 mil pessoas (entre civis e soldados). Em seguida à vitória comunista, o número de mortos foi triplamente maior: mais de 1 milhão. Destas últimas, ninguém se importou. Simples: não era a vida, nem o drama real daquele povo que importava àqueles jornalistas e 'pacifistas'. Era a própria guerra com sua elétrica tensão. Theodore Dalrymple anotou a frase de um anônimo no livro-presença de uma amostra novaiorquina de fotografias feitas por repórteres caídos em conflito: 'se não existissem guerras, o que fariam esses jornalistas?!'

Que fariam muitos defensores de direitos humanos se não houvesse desrespeitos? Que fariam colunistas sociais sem fofocas e crimes? Que fariam feministas sem violência contra mulheres? Que fariam advogados sem nossas intrigas e conflitos? Que fariam marxistas sem miseráveis e oprimidos? Que fariam teólogos da libertação sem pobres? Que fariam agentes sociais sem drogados, excluídos e vagabundos?

Na Grã-bretanha, continua o psiquiatra Theodore Dalrymple, há postos assistenciais cujo número de servidores frequentemente supera o de pessoas assistidas. Gastos burocráticos e empregatícios muito superiores aos recursos destinados às necessidades da população mostram que o departamento destinado a amparar desvalidos, ampara mais os que devem amparar do que os que são amparados.

Simone de Beauvoir, ícone do feminismo francês do século passado, jamais se interessou realmente pelo sofrimento de mulheres. Apelo contrário, aproveitou-se da vulnerabilidade de adolescentes refugiadas russas para abusá-las. Isso diz de seu real e sutil objetivo: legitimar e justificar a esculhambação e a rebeldia que sua vida pessoal guardava. Tal desonestidade intelectual e moral, agora vindo à luz, expõe o escárnio e a afronta praticados aos que se moviam por retidão e boa vontade crendo nela. O autêntico apreço por pessoas reais se esvai num ego narcisista, hipócrita e pervertido que agride os céus. Não há pecado desonesto maior que o de proclamar amor à humanidade sem amar absolutamente ninguém.

Membros da CNBB, semelhante sindicato, se creem representantes de cristãos católicos brasileiros, mas estarrecem a confiança deles com suas posturas e afirmações paradoxais quando apoiam abertamente partidos abortistas, promotores das drogas, cerceadores de liberdades, ladrões incontestes de bens públicos, defensores e financiadores de regimes ditatoriais. Exatamente o oposto do que pedem os Evangelhos. Deus do céu! Valha-me Nossa Senhora! Choca o exemplo do bispo de Guarabira, Paraíba, D. Aldemiro Sena, saindo às ruas galhardamente para comemorar a vitória roubada que o Lula supostamente teve. Chamados a presidir, amar e proteger vidas humanas e verdades cristãs, são os primeiros a nos confundir e a nos vilipendiar. O que sobrará do tacho raspado para nos alimentar? Mesmo nossos teólogos libertadores, o que sobra deles é uma espécie de funcionalidade religiosa a serviço de asquerosos partidos políticos dados à corrupção da alma e do corpo.

Por último, a história mais chocante vem da semana que passou, por ocasião da morte de Hebe de Bonafini (1928 – 2022), a mais conhecida líder das mães da Praça de Maio, na Argentina. O papa Francisco lhe rendeu refinada homenagem póstuma que a aproximou dos méritos de Jesus Cristo. Peço perdão os que amam o papa, mas é incompreensível Sua Santidade desconhecer feitos da senhora Hebe de Bonafini que podem ser enumerados aqui: a) Defender intrepidamente regimes ditatoriais como o castrista em Cuba, o chavista em Venezuela e o sandinista em Nicarágua; b) Manter ligações íntimas com as FARCS (como atesta o notebook encontrado com Reyes), com o ETA (Exercito Separatista Basco) e com a guerrilha de Chiapas (México); c) odiar e considerar o papa João Paulo II um cerdo incomível destinado ao inferno; d) certa ocasião tomar de assalto a catedral de Buenos Aires e literalmente cagar e urinar no seu altar (e Bergoglio era arcebispo daquela arquidiocese); e) aplaudir e comemorar efusivamente os atentados terroristas de 11 de setembro 2001 nos quais morreram mais de 3000 inocentes (entre eles, argentinos); f) admirar e apoiar a organização terrorista Al Qaeda de Bin Laden estimando seus atentados; g) ter dois filhos (Jorge e Raul) treinados como guerrilheiros em Cuba a fim de realizar atentados, sequestros e assassinatos na Argentina; h) proclamar-se defensora de direitos humanos sem jamais querer ter contato com mulheres de lenço branco cubanas, mães e esposas de presos políticos daquele país (embora viajasse a Cuba seguidamente); i) receber dinheiro do narcotráfico para fins revolucionários mantendo arsenal de armas nas dependências da Universidade das Mães de Praça de Maio fundada por ela; j) adotar um parricida como filho; l) defender a violência armada e o kirchnerismo obtendo vantagens econômicas e legais; m) ser condenada à prisão por desvio de dinheiro público e tráfico de armas e descumprir a ordem judicial com ajuda de Néstor Kirchner à época presidente; n) ser destemida militante da causa abortista. Se o pontífice tinha conhecimento desses fatos e mesmo assim a 'santifificou', então é porque sabe o que não sabemos. Caso contrário, resta-nos supor que, apesar do Espírito Santo, sombras peronistas e obscuras o contaminaram.

O espetáculo das almas corrompidas não termina na enumeração de tais fatos. Desonestidades em profusão reverberam no palco político, em Igrejas, universidades, nos meios jornalísticos e culturais. O mais triste enredo das teias e cadeias diabólicas desse diagrama se anima no poder Judiciário. Ali se vê o quanto essa gente, desde juízes da suprema corte até advogados, não ama a justiça, mas promove o inferno.

Com século de antecipação, o escritor dinamarquês, S. Kierkegaard (1855) previu tragédias intelectuais e morais abatendo parte da humanidade. No picadeiro, um palhaço cheio de angústia e desespero pede à plateia que abandone arquibancadas. Um incêndio iminente consumirá o circo. Em vão. Gritos se misturam a aplausos, aplausos a gritos. Quando o fogo irrompe, engole a todos.

* O autor é professor de Filosofia.