Fernão Lara Mesquita, em O Vespeiro.
Tema recorrente tanto entre os estudiosos do assunto quanto entre os diletantes é o dos ingredientes necessários para uma sociedade migrar para a democracia.
No Capitulo IX de A Democracia na América (1830), a apenas 42 anos de distância da fundação e às voltas com as primeiras tentativas fracassadas de importação do novo sistema para a Europa e outros cantos da própria América, Tocqueville trata das “Principais causas que contribuem para manter a republica democrática nos Estados Unidos”.
Destaco esse manter porque em diversos trechos anteriores do livro ele já tinha tratado dos excepcionalismos que permitiram instalar um governo do povo, pelo povo e para o povo na América, cujas instituições têm por base, não mais a propriedade de tudo pelo Estado que se confunde com o monarca (como continua sendo nas ditaduras e quase ditaduras de hoje), mas a garantia pelo Estado da propriedade privada conquistada com trabalho por cada indivíduo. Foram eles, entre outros menores: a ausência de uma privilegiatura a ser derrubada instalada ha séculos no poder e o sistema de colonização inglês entregue a empresas privadas que, ao oferecer glebas de terra aos plebeus que se dispusessem a povoar os novos territórios criou, pela primeira vez na história da humanidade, uma nação de proprietários.
Neste capítulo Tocqueville já trata de outra etapa do processo e examina os três elementos que o debate de seu tempo apontava como decisivos para a consolidação da democracia americana: as condições físicas dos Estados Unidos que garantem acesso fácil à riqueza, a engenhosidade das suas leis e “os costumes dos anglo-americanos” (hoje dir-se-ia sua “cultura”).
É para desclassificar os dois primeiros que ele cita a América do Sul cujos povos “estão em territórios com as mesmas condições físicas de prosperidade mas não têm as mesmas leis nem os mesmos costumes e por isso são miseráveis”. E também o México, que “embora situado em território tão rico quanto o da união anglo-americana e tendo-lhe copiado as mesmas leis, não conseguiu adaptar-se ao governo da democracia”. E conclui: “se fosse preciso classificá-las eu diria que (ainda que cada uma tenha seu peso no processo) as causas físicas contribuem menos que as leis, e as leis menos que os costumes”.
É nestes que ele se concentra, então:
“Os povos europeus partiram das trevas da barbárie para avançar para a civilização e as luzes e seu progresso foi desigual. Alguns progrediram correndo; outros avançaram andando; muitos ficaram parados e dormem ainda hoje à beira do caminho. Os anglo-americanos já chegaram civilizados ao solo que sua posteridade ocupa hoje; tinham pouco a aprender, bastava para eles não esquecer (…) São muito poucos os sábios mas não ha nenhum ignorante. A população inteira está entre esses dois extremos (…) O pioneiro da marcha para o Oeste é um homem civilizado que resolveu viver por um tempo na floresta. Avança pelos desertos do Novo Mundo com a Bíblia, um machado e seus jornais debaixo do braço”.
“Não queira fazer um americano falar sobre a Europa. Vai ficar limitado às idéias gerais e indefinidas (…) Mas se você o interrogar sobre o seu próprio país, verá dissipar-se rapidamente essa nuvem. Ele explicará quais são os seus direitos e quais os meios para exercê-los; mostrará que sabe bem por quais regras se pauta o mundo político e que ele está perfeitamente familiarizado com a mecânica das leis”.
Quem se interroga sobre as condições para a democracia na babel meticulosamente cultivada com deseducação e censura institucionalizadas do Brasil a 192 anos de distância do momento em que Tocqueville o fez e mais de um século depois dos estudos de Max Weber (1905) sobre a relação que há entre a ética protestante, fruto de uma revolução que, mais que religiosa, foi educacional, e o espírito do capitalismo, filho da democracia, sabe bem da importância que essa quase perfeita distribuição do conhecimento entre os colonizadores da América do Norte teve para a fundação do novo regime.
Mas o que Tocqueville quer destacar neste capítulo é, de novo, sua admiração pelo papel formativo que as instituições autenticamente democráticas (inglesas) têm. Um papel tão grande ou maior, acrescentaria eu como brasileiro, que o papel deformativo que têm as instituições anti-democráticas…
Em capítulo anterior já discutido aqui (NESTE LINK) ele dizia, da instituição do júri, sobretudo a do júri para causas cíveis da Inglaterra, que “ele serve para dotar todo e qualquer cidadão da experiência de ser juiz, e essa experiência é a que melhor o prepara para ser livre. Ela reafirma, em todas as classes sociais, o respeito pela coisa julgada e pela idéia do Direito. É a maneira mais eficaz de, ao mesmo tempo, fazer o povo exercer o seu poder e aprender a exercer o seu poder numa democracia”.
Neste capítulo em que exalta “os costumes dos anglo-americanos”, ele constata que “É participando da confecção das leis que os americanos aprendem a entende-las; é governando que eles aprendem sobre as formas de governo” . Tudo acontece, portanto, de uma maneira orgânica que se auto-alimenta. E então aponta o fator que diferencia “os costumes” dos anglo-americanos dos do resto dos europeus para fazê-los indispostos para a democracia. “Nos Estados Unidos todo o sistema de educação está voltado para a educação política; na Europa o objetivo principal é preparar para a vida privada”. Ou seja, cada qual respondendo à sua própria história, uns aprendem a ser o poder, os outros a defender-se contra o poder.
Democracia, enfim, é sobretudo uma questão de treino. Como tudo o mais nesta vida, só se aprende de verdade fazendo.
Esse é o aspecto oculto que põe em causa a tese da “decadência da democracia americana” muito em voga num mundo quase todo ele jejuno em democracia, onde a imprensa só cobre, dos Estados Unidos, as ações do governo federal, o único espaço que ela compreende porque é aquele em que a democracia quase não entra. O “treino” do cidadão americano que, todos os dias e cada vez mais, decide diretamente, no voto, cada minúcia de tudo que afeta sua vida nos estados e nos municípios onde de fato vive, explica a resistência exasperada que, por falta de lideranças que traduzam e dêem consequência mais prática a essa forma tão rara de força, esse cidadão pleno, desconhecido de quase todo o resto do planeta e menosprezado pela sua própria mídia de massa, expressa de modo inarticulado vociferando na praça pública da internet e “votando contra” muito mais do que a favor do que se lhes apresenta nas eleições majoritárias.
É a censura dessa válvula de escape das praças públicas eletrônicas privadas que é hoje objeto da luta decisiva para a democracia nos Estados Unidos e no mundo que Elon Musk parece ter comprado. Mas isso é tema para próximos artigos.