Boa parte do noticiário da semana passada descrevia os debates sobre a passeata gay em Roma como um confronto entre o movimento homossexual e a “extrema-direita”. É típico exemplo de manipulação de vocabulário, que, adotada em escala mundial, tem mais força persuasiva do que qualquer argumentação ou campanha de publicidade explícita.
O deslocamento semântico da “extrema-direita” cada vez mais para o centro visa a criar na opinião pública, por meio da sugestão irracional repetida, uma associação entre a imagem hedionda do nazi-fascismo e a de qualquer resistência, por mais mínima e discreta, que se oponha aos caprichos e exigências da militância enragée.
Extremismo é, por definição, o emprego de meios violentos para impor mudanças ainda mais violentas, como por exemplo leis raciais darwinistas ou a supressão forçada da religião. Quando a imprensa em massa, com o maior ar de inocência, passa a chamar de “extremista” qualquer cidadão pacífico que se apegue aos mandamentos de sua velha religião em vez de curvar-se com veloz solicitude às exigências repentinas de revolucionários histéricos, estamos diante de um caso óbvio de manipulação, destinada a forçar a rápida implantação de novos hábitos e valores por meio do engodo, eludindo os riscos do debate honesto e franco.
Se alguém dissesse, com todas as sílabas, que ser contra casamentos de machos com machos é nazismo, a mentira grotesca se denunciaria no ato. Embutida em frases de noticiário, passa como obviedade inofensiva. Repetido o truque algumas vezes, já se pode proclamá-la em voz alta sem risco de contestação: o hábito introjetado bloqueia as objeções conscientes.
A maior parte da Humanidade não tem defesa contra esse ardil. Espremidos entre a hipótese de ceder às novas palavras de ordem e a de tornar-se suspeitos de nazismo, quantos cidadãos terão o tempo e a prudência de tomar um recuo, de rejeitar a formulação do problema, de desmontar a armadilha lógica preparada para limitar sua visão dos fatos e sua capacidade de escolha? A maioria simplesmente aceitará a opção que lhe impõem. É verdade que cada concessão, isolada, significa pouco. Mas o efeito acumulado de milhares de pequenas concessões é o comprometimento integral da alma, a completa abdicação do juízo crítico. Não se pode nem chamar isso de servidão voluntária: é a servidão hipnótica.
Uma imprensa que submete seus leitores a esse tratamento não tem a menor idéia do que sejam democracia e liberdade de opinião, pois se esforça para liquidá-las no ato mesmo em que alardeia defendê-las. Não há debate possível sem o acesso consciente aos problemas em disputa. Tanto quanto a censura ostensiva, a transferência proposital das escolhas para o reino nebuloso das reações inconscientes é um abuso de autoridade, uma prepotência cínica que suprime o direito de saber, fundamento do direito de opinar.
A falsa rotulação de extremismo é só um exemplo entre milhares. Ninguém, hoje em dia, pode se dizer um cidadão livre e responsável, apto a votar e a discutir como gente grande, se não está informado das técnicas de manipulação da linguagem e da consciência, que certas forças políticas usam para ludibriá-lo, numa agressão mortal à democracia e à liberdade.
Essas técnicas são de emprego maciço, constante e pertinaz nos meios de comunicação e nas escolas. Apesar de sua imensa variedade, todas têm por princípio básico a distração induzida, o bloqueio sutil do julgamento consciente. Opiniões que, expostas com nitidez, suscitariam a mais obstinada oposição, são facilmente aceitas quando apresentadas de maneira implícita e envoltas numa névoa de desatenção. Há publicações inteiras, programas de TV inteiros, livros didáticos inteiros que são, de ponta a ponta, desatenção planejada.
Até a década de 70, quando a maior parte das técnicas a que me refiro estava ainda em fase de estudos em laboratório, os intelectuais se interessavam pelo assunto, investigavam, discutiam a imoralidade e a periculosidade da ameaça iminente que elas representavam para a democracia.
Charles Morgan deu o alarma em “Liberties of the Mind”, Aldous Huxley em “Regresso ao admirável mundo novo”, Arthur Koestler promoveu congressos internacionais para discutir o perigo, Ivan Illitch fez pesquisas memoráveis sobre a manipulação das consciências pelo establishment médico e educacional.
De súbito, as discussões cessaram e as técnicas denunciadas foram entrando, uma a uma, sem a menor resistência, no uso cotidiano de jornais, escolas, canais de TV. Não é de estranhar que essa mudança tenha sido acompanhada de um vasto recrutamento de intelectuais “progressistas” para organismos internacionais, ONGs, serviços secretos e outras entidades interessadas em conduzir a discreta mutação psíquica dos povos. Hoje praticamente não há mais intelectuais independentes. Todos se cansaram de “interpretar o mundo” e aceitaram ser bem pagos para “transformá-lo”.
A elite de intelectuais ativistas que hoje maneja os cordões é tão cínica que chega a inventar as mais artificiosas justificativas ideológicas dessa manobra maquiavélica. É inútil argumentar racionalmente, proclama Richard Rorty: tudo o que podemos fazer, diz ele, é “inculcar sutilmente nas pessoas os nossos modos de falar”. E Antonio Gramsci, antecipando-se aos tempos, já tinha criado toda uma teoria da “revolução passiva” para demonstrar que a sonsa indiferença da multidão distraída vale por adesão explícita e basta para provar que a tomada do poder pelos comunistas foi uma escolha democrática do povo.
Como não enxergar a dose extraordinária de malícia, de presunção arrogante, de desprezo pela liberdade de consciência, que há nessas doutrinas de farsantes e tiranetes.
* Publicado originalmente em O Globo, 15 de julho de 2000