• Aloísio Leoni Schmid
  • 18/02/2025
  • Compartilhe:

Curitiba, alguns livros e o fim do automóvel privado

 

Aloísio Leoni Schmid

          Curitiba é lembrada como modelo. Não sei como isso começou. Considera-se o público daqui muito exigente. Não são raras as comparações com a Europa (em geral, por quem nunca esteve lá). Aqui se testa produtos em lançamento. Este texto é sobre um caso desses que existe, talvez, somente na minha imaginação. Mas resolvi compartilhar, pois é gostoso ter tais insights e encontrar ressonância.

Em Curitiba, o poder executivo vem gradualmente convertendo ruas naturais - de mão dupla - em vias de mão única. Nessa prática, em geral estabelece os chamados "binários" - pares de ruas paralelas, próximas entre si e de sentidos opostos – e, como se fosse condição necessária, extingue (ou, se você preferir, extirpa) as vagas de estacionamento de ambos os lados. No projeto de um condomínio residencial ou comercial, é comum que jovens profissionais de Arquitetura fiquem com a tarefa de criar vagas de estacionamento em espaço exíguo. Parece-me que, na administração de Curitiba, o desafio do estagiários seja outro: quem elimina mais vagas?

Há vinte anos, eu me encantei com as acolhedoras ruas de Medellín, as casas no alinhamento predial (sem o famigerado recuo obrigatório de muro e jardim que aqui se tornou quase a regra). Janelas para a calçada, um canteiro adjacente a elas, estreito, de umas trepadeiras, folhagem e flores; outro paralelo no meio da calçada, com exemplares mais viçosos das mesmas plantas e alguma árvore. Da Colômbia eu me transportei ao "Uma rua como aquela" de Lucília Junqueira de Almeida, romance que outrora me acalentou e, penso, também outros adolescentes bem comportados. O comércio de rua é comumente pequeno, orgânico, muitas vezes familiar. Entro numa loja para comprar, olhar, pedir uma informação. O tempo faz as lojas pertencerem aos locais. Como conseqüência, dão vitalidade às calçadas e, indiretamente, previnem a violência. Essa análise está no "Live and Death of Great American Cities" de Jane Jacobs. Um exemplar em formato de bolso, amarelado e roto, todo anotado de uma disciplina de mestrado, habitou minhas estantes até o dia em que recebi em casa um jornalista estadunidense sedento por informações de Curitiba. Veio conhecer essa cidade em que, em termos brasileiros, se experimenta. Porém, constatei que ele desconhecia os relatos sobre Nova Iorque e Boston pela jornalista tão cara a Lerner - sim, Jane Jacobs não era urbanista, mas casada com um deles. Dei-lhe de presente o livro bem amarelado. De Curitiba para o mundo! 

Falo de dois livros muito diferentes. Um é um romance infanto-juvenil despretensioso surgido no Brasil nos anos 80. O outro, uma obra de não-ficção, quase um tratado urbanístico, publicado nos Estados Unidos nos anos 60. Curioso é que ambos me remeteram às casas sem recuo. Em Curitiba, sobrevivem relativamente poucas. Penso na Prudente de Morais, na Saldanha Marinho e, exemplo mais pitoresco, na Travessa dos Editores, nas Mercês. Nunca tinha passado por ali, até que precisei estacionar por perto (novamente a falta de vagas). Uma rua estreita, a calçada estreita, as janelas como que querendo examinar você melhor e as portas, puxar uma conversa. Jane Jacobs chamava as janelas de casas assim e, como elas, as vitrines de lojas, de "eyes on  the street". Olhos da rua ou olhos para a rua. Melhor a segunda tradução. Não se trata de belos olhos para ser vistos - como das vendedoras de shopping. Não porque aos olhos "para" a rua faltem atributos de cor verde ou forma amendoada; mas porque, mais que olhos sedutores, são olhos de zelo e compaixão. Humanizam o espaço público ao redor: de espaço de ninguém, passam a ser espaço de muitas pessoas.

Esse mix fino de usos colabora para tornar as cidades mais vivas. O mix era elemento freqüente ao se falar do urbanismo de Curitiba – em livros, palestras e até em folhetos turísticos; em inglês, francês, japonês; pelo mundo mas talvez principalmente aqui onde as pessoas votam. Mix que ficou na saudade quando da criação dos dois primeiros shopping centers, aqui mais para o centro, Mueller e Curitiba (quem lembra do primeiro mesmo, o Pinhais? Pois diziam: Mueller quebrou Pinhais, vote Requião). Ocorre que, nos anos 80, a legislação de uso e ocupação do solo ainda vedava empreendimentos de área construída excedendo 10 mil m² pois, de consenso, teriam efeitos indesejáveis de concentração de carros e polarização do comércio. Meses antes do lançamento do Mueller, a Lei ganhou nova redação que agora relaxava tal limite de área nos casos que tratassem de preservação do patrimônio histórico.

No primeiro caso, no bairro Centro Cívico, sob esse pretexto, a fundição com o nome da família Mueller, então em ruínas, foi revitalizada. Basicamente, a cidade "ganhou" um bloco de paredões amarelo-claros de três a quatro pavimentos ocupando o quarteirão inteiro, cercado por uma calçada estreita, sem um pé de coisa nenhuma. Ornatos de gesso foram aplicados ao redor das falsas janelas, emparedadas que foram por dentro, e sem produtos para mostrar. Apenas duas portas para a rua, em faces opostas. Jane Jacobs foi esquecida e eu ainda nem tinha meu exemplar para levar correndo àqueles planejadores. 

No segundo caso, ali no começo do Batel, entre a Visconde de Guarapuava e a Sete de Setembro, havia um quartel. Já era Setor Estrutural - um corredor que permite prédios altos e próximos entre si). Já estava num estado bem denso, e assim seguia por quilômetros em direção ao sul, já canalizando muito trânsito. O quartel foi desativado e ganhou expansão para cima e para baixo, comportando dezenas de lojas. Desta vez, três portas para a rua. 

Pois o que é mesmo que fundamenta a preservação de tais edifícios? Memória afetiva? Eu teria meus motivos: pois sempre morei perto da fundição e, aos 18, foi naquele quartel do Batel que me apresentei. Mesmo que eu soubesse, aqui, estender-me num romantismo urbano, seria o tipo de critério subjetivo, idiossincrático, duvidoso. Em nome desse patrimônio afetivo de poucos surgiram dois edifícios que, com seus empregos e impostos, dão as costas à cidade com sua enorme extensão de fachadas cegas. Aliás, assim também fazem os condomínios fechados nos bairros. Dentro, segurança e tédio. Um passo para fora, solidão e perigo.

Voltando para o caso das vias de trânsito, eu falava da falta que as vagas fazem para o comércio. O estacionamento ao longo de muitas vias centrais como a Brigadeiro Franco somente é liberado das 20h às 7h00 – horário de comércio fechado. Horário ideal para visitar avós, tios e sogros idosos. Buscá-los para almoço, compras, consulta médica em dia de semana, nem pensar. Que dizer de idosos que foram viver nas densas torres dos setores estruturais, como na praça da Ucrânia, nunca liberados para estacionar ou parar? O embarque e desembarque de idosos tornou-se uma façanha olímpica.

Enquanto isso, o jogo de eliminação de vagas segue vigoroso. A tortuosa Mateus Leme era uma rua bucólica, vívida, com sua mistura de casas e lojas, restaurantes e fabriquetas. Orgânica. Hoje é a via rápida de acesso para Almirante Tamandaré e Rio Branco do Sul, cidades-dormitório. Já Curitiba, tornou-se cidade-passagem. Isso é notável não só na Mateus Leme, mas ao longo do gigantesco X do "Setor Estrutural". Desde a região central da cidade, lança pernas de edifícios altos e vias de trânsito rápido para Nordeste, Sul, Leste e Oeste, com habitação vertical e densificada, comércio e serviços nos pavimentos inferiores - aqui sim a Jane Jacobs foi prestigiada. Mas ao longo dos eixos de transporte intenso,  o conforto nos muitos lares é relativizado. Nos anos 70, 80, 90, 2000, foram muitas noites mal dormidas para quem ali vivia. Essa afirmação não é subjetiva: foi registrado em 2007 pela fonoaudióloga Angela Ribas em sua tese em que, de 100 apartamentos no Setor Estrutural, sorteados e visitados para avaliar sobre condições ambientais, nas 100 unidades os moradores fizeram menção espontânea ao ruído excessivo.

Em férias e sem sair da cidade, decido buscar uns itens para casa. Vou procurar uns ganchos para roupa e desço a Padre Agostinho, ao longo do Setor Estrutural a Oeste. Vou por uma de suas quatro faixas, muito estreitas e dificilmente aproveitadas. Penso que faz os motoristas sentirem-se motocicletas por entre as frestas. Não há vagas para estacionar e constato que, em algum ponto, estaciona-se sobre a grama, no melhor estilo brasiliense. Depois vou mandar emoldurar uns quadros, lembrei de uma boa moldureira no Boa Vista, ao Norte. Pacato bairro residencial de muitas habitações unifamiliares e comércio vicinal, eu me frustrei ao ver meu caminho habitual convertido em mais um novo binário - sem vagas – que o perpassa. Mas meu azar foi maior na Silva Jardim, altura do antigo Cefet, em que do lado direito há um tradicional sebo de gibis. Fui até lá esses dias no intuito de gastar duas horas e algum dinheiro com cultura, um bom café coado sem leite nem açúcar. Não encontrei vaga para parar, mas não porque naquele dia eu cheguei tarde: já não existem mais vagas, nem mesmo para estacionar meu ínfimo two-seater (na Europa de verdade, encontra vagas exclusivas para eles). Onde foi que eu errei? Nem estava a viajar e queimar querosene de aviação, e naquele dia nem saí para beber ou mesmo praticar volante agressivo. Ressoou um tom moralista que eu conhecia meus colegas universitários quando vivi na Alemanha: lá só se tolerava quem saísse a pé, de bicicleta ou bonde. Até nosso professor orientador, se chegava de carro, fazia isso bem discretamente. Voltei para casa em meio a uma chuva de verão, intensa e imprevisível.

No passado, nos dias de férias com chuva, eu poderia estar jogando Banco Imobiliário com irmãos e vizinhos. Hoje eu penso numa versão "2030" do clássico jogo. Ganha ponto quem entregar 50 vagas. Ganha mais ponto quem entregar 100 vagas. Ganha bônus quem, eliminando vagas, fizer fechar comércio. Mas se jogar os dados, andar com seu peão e cair na casa "experimento social" e, tirar a carta "banimento do automóvel individual", é jogo encerrado; o adversário que estiver em posse do "start-up" do aplicativo de carona venceu. 

A vida real já está quase tão assustadora. As cidades "de poucos minutos" deixam de ser curiosidade e se encontram em lenta (e cuidadosa) implementação. Curitiba novamente é escolhida para representar o Brasil. Organismos internacionais em Nova Iorque, evento nas montanhas da Suíça, tudo sob a empolação teórica de um Yuval Harari, leitura de jovens adultos mal aconselhados. Prevê a felicidade para as pessoas através de jogos eletrônicos e drogas, já que "nada terão e serão felizes". Veículos serão de uso compartilhado, elétricos, autônomos. Seguirão um desses  "gadgets" acessíveis na palma da mão, ou no pulso, um toque ou comando de voz, ligados no "start-up" (isso é um belo eufemismo, já que aquela empresa iniciada na garagem hoje domina o mundo). O sistema elétrico interligado de poucos anos antes, as usinas do Iguacu, Itaipu, térmicas, tudo já se tornado insuficiente. Haverá outro sistema, umas tantas vezes maior, agora solar. Eu mesmo fui entusiasta dessa tecnologia já lá na graduação e, depois que me formei, fui do outro lado do mundo estudá-la. Hoje, módulos solares e baterias são coisa trivial. Vêm quase que exclusivamente da China. A energia como ferramenta de dominação social. Um princípio que em 1885 já era conhecido, tal que foi o fio condutor do romance Germinal, de Emilie Zolá. Mineiros de carvão eram mantidos na penúria e sequer tinham combustível para atravessar o inverno. Ou no livro de não-ficção de 1986 "Uma história da energia", dos sociólogos franceses Daniel Hémery, Jean-Claude Debier e Jean-Paul Deleáge. Com algumas idas a Brasília no meu início de carreira, um outro grande livro em formato de bolso era exposto no aeroporto na lojinha da editora da UNB, que aqui lançou a tradução por Sérgio de Salvo Brito. Esse livro já me serviu de valiosa referência em disciplinas sobre energia e ambiente. Livros-texto surgem quando teorias se consolidam. A aritmética. A física Newtoniana.

Já o assunto de efeito-estufa não é algo consolidado, nem corresponde a uma teoria de alguma ciência, sequer a uma hipótese querendo se tornar teoria. Vou explicar com uma situação didática. Na disciplina de Métodos de Pesquisa, já perto da minha vigésima turma, uma mestranda me entregou seu esboço de projeto, falando de aquecimento global como se fosse conhecimento definitivo. Eu a orientei a refletir. Quando muito, manter o conceito chamando isso de pressuposto, coisa que aprendi de minha amiga Carminha, nos anos em que dividia a disciplina comigo. É algo incerto como uma hipótese, mas não é passível do teste de hipótese, já que não corresponde ao objetivo da pesquisa e nem poderia corresponder, nenhum orientador sensato poderia cobrar isso, dados o tamanho e a complexidade da tarefa. É um pressuposto e, sublinho, de base política. "Mas isso vem do IPCC, vem lá da ONU". "Então, prezada discente, você incorre em outro erro, o argumento de autoridade, que consiste em apelar para o poder e a fama, capas da Nature ou da Science, mesmo para uma métrica usual como fator de impacto, desacreditada que está essa ciência do establishment.  E não venha argumentar com número de likes." Pois, autoridade por autoridade, há mais de dez anos eu me desfiz de alguns livros sobre "aquecimento global", pois minhas estantes são finitas e seguem aquilo que, em Mecânica dos Fluidos, chamamos de equação da continuidade. o maior deles editado pelo Greenpeace (quem, sendo eternamente jovem, não foi também rebelde um dia?). 

As metáforas, mais que recurso de estilo, são inseparáveis do nosso raciocínio  - assim afirmam George Lakoff e Mark Johnson em seu precioso "Metaphors we live by", que exemplificam com "tempo como dinheiro" ou "discussão como briga". Proponho aqui a metáfora de "ciência como briga" e coloco, do lado de cá, Patrick Moore (sim, o co-fundador arrependido do Greenpeace), John Coleman (criador do Weather Channel) e ainda John Clauser, William Soon e diversos outros cientistas que aparecem no documentário Climate: The Movie de 2023. De São Paulo para Curitiba, o meteorologista Dr. Ricardo Felicio, quem estudou mais o clima que todos os influenciadores woke juntos, e estudou ainda os tantos modelos tendenciosos de clima (eu me entendi com o Felicio, pois fazer modelos no computador é a minha diversão de fins de semana chuvosos nas minhas cinco décadas vivendo em Curitiba, que fica logo atrás de Manaus em "metros" de chuvas anuais). Não contente, Felicio também estudou toda a trama político-econômica que sustenta a falácia do efeito-estufa. Eu digo aos discentes de mestrado: "quando veículos de imprensa e influencers fazem coro para, com a força do poder econômico, emitir parecer de cientificidade, desconfiem." Jornalistas são pessoas comuns habilitadas a falar sobre qualquer coisa para pessoas comuns. Cientistas estudam uma coisa com profundidade. Comunicadores científicos, além de estudar uma coisa com profundidade, são capazes de explicá-la aos familiares numa feijoada de domingo, ou aos amigos numa mesa de bar, com pausas para molhar a garganta de cerveja gelada. Precisamos de muitos deles para explicar que não há nada de errado nos países que consumem os recursos que têm para se desenvolver - venham eles do céu ou do subsolo.  

Antes de terminar, passo mais uma vez por Curitiba. Não para seguir Tolstoi, falar da minha aldeia e me achar universal. Não acredito em empreender na escala global se a vida acontece ao alcance dos sentidos. A grande mídia entretém com uma mistura de campeonato europeu, Papa, música pop, Amazônia em chamas, umas autoridades de terno azul escuro e carne artificial. Apresentadores fiéis têm, nos lares, direito prioritário à voz. Testemunhamos a transição de seus cabelos para o branco: Cid Moreira, Bonner. Vão preparando corações e mentes para o governo global. Serão restrições de mobilidade e de opinião que deixariam George Orwell sem graça.

Curitiba teve sua evolução espacial e, nela, seu bem-sucedido planejamento urbano com uma rede de transporte público notável. Há ainda, e numa escala bem menor e mais recente, o trânsito de bicicletas e, naturalmente, o trânsito de pedestres, sacramentado na Rua das Flores, de 1973, a primeira zona de pedestres de que se tem notícia no Brasil. Mas não podemos omitir a realidade da mobilidade motorizada individual. Não fosse o automóvel, Curitiba não teria a escala que tem, com sua relativamente baixa densidade habitacional - nada comparável aos extremos de espraiamento de Los Angeles ou Orlando, tampouco de densidade como Roma ou Paris e menos ainda Tóquio ou Pekim. Estamos, assim muitos do Brasil urbano, num mesmo patamar das grandes cidades da Austrália e com correspondente gasto per capita de energia para transporte. Automóveis são, para a população de Curitiba, expressão do direito de ir e vir. Acrescento e sublinho: parar quando der vontade. A classe política sabe muito bem disso. Mexer com hábitos arraigados de motoristas é arriscar perder eleições; por isso, tudo tem ocorrido gradualmente. Deixo um apelo a quem na Câmara de Vereadores representa as pessoas com independência, honra seu cargo e vive de seu salário a parar e rever o processo com transparência, esclarecimento, discussão e participação.

*      O autor, Aloísio Leoni Schmid, é engenheiro mecânico e professor no curso de Arquitetura e Urbanismo e no Programa de Pós-Graduação em Engenharia Civil da UFPR.