Enquanto em São Paulo o prefeito João Doria anuncia o “maior projeto de privatização” do Brasil e ninguém faz drama, no Rio de Janeiro a venda da Cedae ameaça virar (mais) um fiasco
O que impressiona, no debate carioca, é o tom. A exaltação. O evidente conflito de interesses envolvido na discussão. Tudo isso, alguém poderia dizer, é previsível em um debate envolvendo a privatização de uma empresa pública. Não acho. Uma boa democracia precisa saber separar a lógica dos grupos de pressão do interesse difuso dos cidadãos. A conversa fiada ideológica da argumentação racional.
Leio um artigo do deputado Marcelo Freixo dizendo que a Cedae “vale entre R$ 10 bilhões e R$ 14 bilhões” e que os membros do governo estadual dizem valer R$ 4 bilhões. Na contabilidade do deputado, a companhia, com seu bilionário passivo trabalhista, situa-se entre as 40 ou 50 empresas mais valiosas do país. O dado mais curioso, porém, é uma empresa possuir um valor “teórico” distinto do que alguém esteja efetivamente disposto a pagar por ela numa concorrência pública. Alguém poderia explicar ao deputado Freixo que preços se definem no mercado. É por isso que se fazem leilões para vender uma empresa estatal, e o melhor a fazer é exigir o máximo de transparência nesses processos.
O argumento mais esquisito que li veio inspirado pelo papa Francisco. O sujeito citava a encíclica Laudato si e chegava à surpreendente tese segundo a qual, sendo o acesso à agua um “direito humano essencial, fundamental e universal”, a Cedae não pode ser privatizada. Inútil lembrar que, por esse argumento, também o acesso à comida não poderia ser “submetido às leis do mercado”. Mais esquisita ainda é a ideia ainda presente em nosso debate público, segundo a qual o que é “essencial” deve ser “público”, e o que é público deve ser “estatal”.
Para além da retórica ideológica, há boas razões para ter cuidado com o tema da privatização de serviços de água e saneamento. Os críticos do modelo partem do fato de que sistemas de água e saneamento são monopólios naturais e, nessa condição, exigem muito investimento, não permitem concorrência e carregam um amplo leque de obrigações sociais e ambientais. Logo, deveriam ser administrados pelo governo. Empresas privadas tenderão a encontrar brechas na legislação para investir menos em áreas mais pobres, desconsiderar efeitos negativos de sua atividade sobre o meio ambiente e, pior, tenderão a usar seu poder econômico para “capturar” seus reguladores, estejam eles no governo ou em agências independentes.
Tudo isso é possível. Não passa de retórica vazia imaginar que a simples troca de gestão do governo para o setor privado vai melhorar um serviço de natureza monopolística. Os resultados vão variar imensamente segundo as regras do jogo, a qualidade dos contratos e do controle público. É sobre esses pontos que deveria estar concentrado o debate sobre a privatização da Cedae, no Rio de Janeiro.
A experiência global no tema diz o seguinte: serviços privados de água e saneamento podem funcionar bem e atender os mais pobres. Há mais de 2 mil empresas privadas nesse setor, operando nos Estados Unidos, atendendo mais de 70 milhões de pessoas. O Chile tem sido um bom modelo de gestão privada de abastecimento, mantido pelos governos socialistas. A cidade de Indianápolis recentemente privatizou seu serviço de águas para uma organização privada sem fins lucrativos. Há exemplos distintos. Cidades como Atlanta e Buenos Aires voltaram atrás e retomaram a gestão estatal de seus sistemas de abastecimento.
Um estudo interessante, e com certeza útil para o debate brasileiro, foi realizado pelo economista argentino Sebastian Galiani, hoje professor na Universidade de Maryland. Galiani mediu o impacto da privatização dos serviços de água sobre a mortalidade infantil na Argentina. Crianças são mais vulneráveis a doenças transmitidas por água contaminada e falta de condições básicas de saneamento. Pois bem: na Argentina dos anos 1990, 30% dos municípios privatizaram seus sistemas de água. Um ótimo contexto para comparar os modelos. Os números mostraram o seguinte: na primeira metade da década, não houve diferença nos resultados entre a gestão estatal e privada. Na segunda metade, no entanto, a partir da consolidação do novo modelo, a redução da taxa de mortalidade nos municípios que fizeram a privatização foi 8% maior do que as que mantiveram o modelo estatal. Nas comunidades mais pobres, a diferença foi a 26%. O grande diferencial foi a expansão do investimento. Áreas mais pobres, antes sem cobertura, foram integradas às redes de abastecimento.
Questões comuns, nesse debate, parecem ser as seguintes: taxas tendem a subir logo após processos de privatização? A resposta é sim, em geral devido a longos períodos de ausência de investimento e “gestão política” de preços. Manter tarifas artificialmente baixas para todos significa apenas que os contribuintes como um todo estão subsidiando o consumo de quem eventualmente pode pagar. Estimulando, por vezes, o consumo irresponsável. Outra questão: o governo, em um sistema privatizado, pode subsidiar a oferta de água para os mais pobres? Sim, com a vantagem de saber exatamente quem está sendo subsidiado e a que custo. E sem comprometer a eficiência da gestão.
A comparação internacional, nesse tema, é útil para evitar erros e fazer as perguntas certas, mas não responde à questão central: é melhor um sistema estatal ou privado? Por certo, sociedades com tradição de meritocracia, transparência e profissionalismo no setor público e governos com capacidade de investimento tendem a tornar mais plausível a alternativa estatal. Pergunta rápida: é esse o caso brasileiro? É esse particularmente o caso do estado do Rio de Janeiro?
O ex-governador de Nova York Mário Cuomo costumava dizer que “garantir a prestação de um serviço não implica sua execução pelo governo”. A frase é simples. Ela convida a pararmos, de uma vez por todas, de confundir o “público” com o “estatal” no debate brasileiro. Nos convida a um certo realismo. Precisamente o que parece estar faltando no debate hoje em curso no Rio de Janeiro.
* O autor é cientista política, doutor em Filosofia, professor do Insper e curador do ciclo de debates Fronteiras do Pensamento.