Fernão Lara Mesquita
Em entrevista ao New Statesman esta semana Sergey Karaganov, assessor de confiança dos presidentes Boris Yeltsin e Vladimir Putin, assim como do ministro do Exterior deste último, Sergei Lavrov, repetiu o recado: para a Russia esta é "uma guerra existencial", de modo que se não tivermos "algum tipo de vitória" vai haver "uma escalada" que, sim, pode ser nuclear.
Claro, países nunca deixam de existir, mas para Vladimir Putin e sua camarilha de ladrões essa guerra é, sim, "existencial". Por que razão não houve ainda nem mesmo uma escalada na guerra convencional mas, ao contrário, uma "revisão dos objetivos" da "operação especial" desastradamente posta em curso em 24 de fevereiro pelo ex-agente da KGB, deixando de lado a vitória a qualquer custo para adotar este "algum tipo de vitória" que "é preciso alcançar" para salvar a face é coisa que seguramente tem a ver, para além da força da reação militar da Ucrânia, sobretudo com o modo pelo qual a China reagiu ao desatino de Putin.
Foi no longo telefonema havido entre Xi Jinping e ele dias depois de iniciada a coisa que se deu o primeiro "pé no breque" que Putin não tem podido mais aliviar desde então...
Com toda a tecnologia que levou à globalização do que já é globalizável - a fina fatia da humanidade que, em todos os países, saltou da economia de sobrevivência para a economia de consumo e fala algum inglês - o resto do vasto mundo ainda é uma constelação de servidões isoladas que se expressam em línguas e alfabetos mutuamente incompreensíveis, sem nenhuma comunicação direta entre si e que, também graças a isso, só têm, umas das outras, a imagem filtrada a que seus mestres lhes derem acesso.
No país que já está onde Lula e a imprensa da privilegiatura brasileira querem chegar só "A Verdade" tem vez, de modo que tudo que aparece e permanece na internet É a posição oficial do governo. Todo o resto ou já morreu ou permanece em segredo bem guardado na mente de cada indivíduo tentando evitar o tiro na nuca.
Assim, um passeio pela internet chinesa oferece a oportunidade de saber o que a China oficial está pensando e levando a China real a pensar sobre a aventura de Putin. E não raro essas análises mostram mais lucidez que as dos "especialistas" amestrados da nossa "imprensa livre".
Na plataforma weixin.qq.com está publicado desde 16 de março, sem nunca mais ter sido apagado pela polícia da internet do Partido Comunista Chinês que é de matar Alexandre de Moraes de inveja, um relato dos acontecimentos que precederam a invasão, em que Putin é acusado de ter "manipulado" Xi Jinping ao levá-lo a assinar um acordo com a Russia que o colocou inadvertidamente "na armadilha de uma posição desconfortabilíssima" (an evil-like and unkind position foi a expressão usada na tradução direta do texto do chinês para o inglês) em relação a uma guerra que "viola as regras básicas da civilização".
Segundo o artigo Putin abordou Xi na abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno ameaçados de boicote pelos Estados Unidos com um tratado envolvendo 15 acordos de cooperação apoiando todas as bandeiras geopolíticas da China, da nacionalidade de Taiwan à iniciativa conjunta com a Organização Mundial de Saúde para traçar a origem do coronavirus para fora daquele país, passando pelo apoio às advertências contra "a intenção da Nato de voltar à guerra fria". Xi não tinha porque recusar assina-lo embora o artigo lembre que os 15 acordos não acrescentavam novidade alguma pois todas essas iniciativas eram, desde sempre, apoiadas pela Russia. Mas o fato de te-lo assinado "de modo nenhum significa que a China soubesse com antecedência ou apoiasse a invasão da Ucrânia".
Um dia antes desse artigo aparecer para o público chinês, o embaixador de Pequim nos Estados Unidos, Qin Gang, publicou outro similar no Washington Post, afirmando que dizer que a China sabia das intenções de Putin "é pura desinformação" e que "a posição da China sobre a Ucrânia é objetiva e imparcial, baseada nas regras da ONU de respeito à integridade territorial e à soberania de todos os países, Ucrânia inclusive, que devem ser estritamente observadas".
Em 5 de abril passado outro artigo assinado por Yu Jianrong, intelectual muito popular nas redes sociais chinesas, afirmava que quanto mais se estender, mais a guerra de Putin será impopular na China. "Agressão é agressão. É moralmente errada e ponto".
Também este vinha na sequência de outro publicado no WeChat chinês, que analisava as condições objetivas de Putin levar a cabo o seu projeto:
"A Russia quer brincar de União Soviética mas não tem mais a força econômica que isso requer. A Ucrânia, agora vizinha da Nato e servida por modernas capacidades militares, é uma versão aumentada do Afeganistão enquanto a Russia é uma versão diminuída da União Soviética. Esta guerra abriu um buraco nas artérias econômicas da Russia cuja economia já vinha abalada desde 2012. As ameaças nucleares de Putin nunca chegaram a ser feitas no tempo da União Soviética. São um sinal de fraqueza".
"No tempo da Guerra Fria o PIB da União Soviética era de pelo menos 50% do dos Estados Unidos. Hoje, com um PIB de 1,7 trilhão de dólares, a Russia é menor que a economia da província de Guangdong. O orçamento da Federação Russa de 330 bilhões de dólares para 2021 é metade do orçamento de 705 bilhões do Pentágono. Para manter a fidelidade da Bielorussia, com menos de 10 milhões de habitantes, Putin injeta de 10 a 20 bilhões de dólares por ano naquele país. Não tem condições de fazer o mesmo com a Ucrânia e seus 44 milhões de habitantes".
"A Russia não pode vencer essa guerra. Ela custa 8 bilhões de dólares por mês. Os ucranianos destroem todos os dias tanques e aviões de centenas de milhões de dólares com mísseis individuais que custam apenas algumas dezenas de milhares fornecidos pelo resto do mundo e pela Nato. Não existe mais uma União Soviética nem Ocidente contra o Leste, só existe um jogo econômico global complexo. O tempo não é aliado da Russia. Esse é o poder da globalização e a Russia não tem a opção de resistir-lhe".
A única saída da sinuca em que se meteu é, portanto, a que Xi Jinping indicou a Putin naquele telefonema depois de constatar a reação, "fechada" como nunca, dos Estados Unido e da Europa: alguma que lhe salve a face sem parecer uma derrota total, antes que o massacre de ucranianos se torne definitivamente imperdoável.
Esta salvaria o mundo de ver o ex-agente da KGB apertar o botão. Mas dificilmente salvará ele próprio do final melancólico a que se condenou, nem o povo russo do rebaixamento a satélite da economia chinesa, a inversão do quadro "primo rico x primo pobre" dos dois gigantes comunistas de ontem, que vai lhe restar depois dessa sangria desatada.
*Publicado originalmente em O Vespeiro (13/04/2022)