PUXADORES DO ATRASO
As Campanhas da Fraternidade perderam a capacidade de me surpreender. Há alguns anos ainda me arrancavam uns oh!, uns puxa-vida!, uns mas-que-coisa!. Agora, nem isso. Já é previsível. Silenciam as baterias das escolas de samba e a campanha da CNBB entra na avenida para incinerar a espiritualidade quaresmal. Todo ano muda o tema. Mas o samba-enredo vai na mesma batida: ao sul do Equador só existe um pecado. E uma classe de pecador.
Os europeus que vinham para o Brasil no século 16, distantes de seus códigos originais, naquela nudez tropical onde só a natureza era virgem, botavam prá quebrar. Vem daí a frase tão sedutora aos embarcados nas aventuras ultramarinas: não existe pecado ao sul do Equador. Pois a cada quaresma, o comando da CNBB recicla a frase. É como se nestas bandas só existisse o pecado da produção, do mercado, do consumo e do lucro. Em tudo mais têm os fiéis indulgência plena, contanto que militem na guerra santa contra um desenvolvimento social e econômico que passe pela economia de empresa. Para os puxadores do samba do atraso, ou nos arrependemos do lucro, ou arderemos no inferno. Ou saímos definitivamente desse lupanar chamado mercado, ou sufocamos em sulfeto de hidrogênio (aquele composto malcheiroso, normalmente associado à presença do maligno). De lambuja, neste ano, somos orientados para o neopaganismo do Leonardo Boff: o hino da CF-2011 canta a mãe terra e declara que o planeta é a mais bela criatura de Deus! Surpreso, leitor? Eu não.
Falando em sulfeto, li, desde a curva do cabo até a ponta do rabo, o texto-base desta Campanha da Fraternidade. Não proponho a ninguém a mesma penitência. Suas 32 mil palavras enchem 63 páginas. Metade delas introduz no confessionário cristão pautas tão penitenciais quanto clorofluorcarbonetos, metano, dióxido de carbono, ozônio, potencial hidrogeniônico, hexafluoreto de enxofre e dióxido de enxofre (só pode ser no meio desse enxofre todo que o diabo se esconde). Tal conteúdo, que ninguém precisa ser assessor da CNBB, católico ou bispo da Teologia da Libertação para baixar da internet e passar por sabichão, chega ao texto com os objetivos fundamentais acima. Lembrando-os: pau na economia de empresa, pau no mercado, pau no consumo.
Nesta quaresma, a classe dos judas a serem malhados ganhou mais um membro. Há outros pecadores públicos abaixo do Equador. São os produtores de commodities agrícolas. Gente perversa, que cultiva grande quantidade de coisas tão descabidas como trigo, soja, arroz, algodão e cana. Atenção! Há muito, muito mesmo, a corrigir no uso que fazemos dos recursos naturais. Tampouco estou negando a necessidade do zelo ambiental, nem desconsiderando o fato de que devemos manter em relação à natureza um senhorio responsável, na condição de zeladores prudentes de um patrimônio precioso que devemos legar às gerações futuras. Mas considero necessário dizer que, em essência, são os paradigmas civilizacionais do Ocidente, tão condenados no nº 61 do documento, que, bem ou mal, permitiram ao planeta acolher mais cinco bilhões de habitantes no último século. Tese oposta leva ao que faz o texto-base quando aconselha, no nº 51, que os sistemas de produção, para manter mais gente no campo, deveriam ser antieconômicos e os alimentos deveriam custar mais caro!
Terminei a leitura da peça com a convicção de que ninguém representa melhor o espírito desta quaresma do que os fanáticos do Greenpeace. Até quando os bons bispos vão tolerar essa situação?
ZERO HORA, 27/03/2011