Sabe aquela ficha que você insere na fenda adequada e volta para a sua mão por haver seguido percurso errado? Pois é. Lembrei-me muito dela ao acompanhar os recentes acontecimentos nacionais. Passavam-se os dias, a vida tornou-se uma verdadeira sala de aula, a conta crescia e a ficha era devolvida. Aliás, a festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, etc., etc.. Mas a ficha ainda não caiu. “E agora, José?”, perguntaria novamente Drummond.
A aritmética financeira do Estado é muito simples porque o bem-amado ente político que denominamos Estado só tem um bolso, o do cidadão. Mediante uma sutileza chamada imposto, em vez de nos punguear diretamente, ele nos obriga a lhe entregar dinheiro. Nesses atos – não sem certo sarcasmo - os cidadãos recebem do erário o gratificante e honroso título de “contribuintes”. Contribuintes das cotidianas coletas coercitivas organizadas nos diversos níveis do assim chamado poder público (outro sarcasmo da linguagem política), desta feita aplicado a si mesmo.
Sendo tão simples a aritmética oficial, se quem manda gasta e quem obedece paga, parece inacreditável que a maior parte da população não demonstre qualquer interesse em protestar contra os gastos do Estado. Obviamente, é a despesa pública que determina quanto tempo por mês trabalharemos para o Estado. Imposto é o preço da vida civilizada, disse alguém, e é também o preço do gasto público, complemento eu. Tudo piora quando o lado perdulário dessa relação perde o controle e começa a pedir dinheiro emprestado. Nessas circunstâncias, muitos “contribuintes” passam a imaginar que o aumento da despesa não está impactando os impostos que paga. É como se se tratasse um dinheiro novo, que logo ali adiante, salgado pelos juros, não fosse buscado nos bolsos de sempre. Nessas horas, não faltam vozes para exigir "auditorias", ou pregar calote.
Gasto, déficits e empréstimos, por essas forças inexoráveis do destino, têm que ser pagos. Greves com reivindicação salarial, subsídios públicos, custeio de empresas estatais, luxos e mordomias, obras suntuosas e supérfluas como as da Copa e dos Jogos Olímpicos, penduricalhos de categorias funcionais e toda a despesa incumbida ao Estado oneram o lado pagador dessa relação. Mesmo assim, nunca falta quem se perfile ao lado da criação de tais contas e por elas pressionem como exigências da justiça e dos mais nobres impulsos do coração humano. Onde estavam tais vozes enquanto a Petrobras era saqueada e o preço do combustível usado para proselitismo eleitoral?
Deveria ser o povo, então, o primeiro a se insurgir contra novas despesas, especialmente as não virtuosas, contra a irresponsabilidade fiscal e contra a velha prática de conceder benefícios a alguns à custa de todos. De longa observação, e com raras exceções, a atribuição de qualquer ônus ao poder público se faz em meio a ruidosos e incompreensíveis aplausos.
Fala-se muito, nestes dias, em reduzir impostos, como se o Estado estivesse entesourado ou entesourando. E se deixa de lado o gasto público em seu longo e persistente crescimento. O diabo da ficha não cai!
* Percival Puggina (73), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A tomada do Brasil, integrante do grupo Pensar+.
Rossini - 05/06/2018 18:52:11
Assino em baixo.ODILON SILVEIRA SANTOS ROCHA - 05/06/2018 01:03:02
Caro Professor Onde estavam tais vozes? Umas, cuidando de seus afazeres e interesses; outras, mudas, estavam cuidando para que não lhes faltasse pão no bolso.Fernando A. O. Prieto - 04/06/2018 19:40:04
Esta apreciação parcial e interessada dos fatos parece fazer parte da natureza humana e quase sempre aparece: queremos os resultados de trabalho, mas a grande maioria não quer se esforçar quando seu trabalho entra naquelas condições e horas difíceis e angustiosas, aparentemente sem resultados compensadores (e qual atividade séria em nosso mundo não tem esses momentos ?). É preciso educar a sociedade, a começar por nós mesmos, nosso grupo familiar e de relacionamento, a se conscientizarem de que "não há nada que seja grátis, sempre alguém paga"; esta é a natureza das coisas, esta é a verdade. Reservemos nosso amparo para aqueles que realmente precisam dele (por exemplo deficientes físicos e mentais, perseguidos por motivações políticas e religiosas, e outros semelhantes), e procuremos não dar a atenção demasiada às "estrelas" que só querem aparecer, não nos transmitindo nenhuma mensagem coerente com o padrões civilizados...Luís - 04/06/2018 14:47:16
Parabéns, Puggina, por mais esse excelente artigo. Faço, apenas, duas observações. A primeira delas é em relação ao termo "contribuinte": nas nações civilizadas é utilizado o termo "taxpayer" que - em tradução livre e literal - significa "pagador de impostos". No Brasil, graças à abjeta distorção da linguagem politicamente correta e seus nefastos eufemismos, atribui-se ao cidadão que entrega parte de sua renda ao Estado ( de forma compulsória e coercitiva ) a condição de quem o faz voluntariamente, o que, evidentemente, é um obsceno e sórdido deboche. A segunda observação refere-se aos gastos supérfluos com a Copa e os Jogos Olímpicos: apesar da notória precariedade dos presídios brasileiros e de tantas outras mazelas que assolam este país ( educação, saúde, saneamento, logística, etc ), a mídia tupiniquim festejou a confirmação dos eventos e ajudou a promover o "efeito manada" de exacerbação da irracional alegria brazuca. Sofrendo de autismo e com olhos vendados para a realidade do país, não deu um pio sequer quando soube das intenções do governo petista em sediar os eventos. E os brasileiros, que acreditam em "almoço grátis", não perceberam que estava ali a gênese da atual desgraça orçamentária e a falência do Estado brasileiro.