Percival Puggina
Raymond Aron, filósofo francês do século passado, em entrevista que recentemente assisti, questionado pelo repórter sobre como explicar que parcela da intelectualidade francesa justificasse o stalinismo, disse: “Você conhece a expressão inglesa ‘wishfull thinking’ (pensar segundo o que se deseja)?” E mais adiante conta se haver interrogado durante muito tempo sobre os motivos pelos quais era tão difícil para certos intelectuais aceitar que 2 +2 seja igual a 4 e que o gulag não era uma democracia.
Esse breve trecho da conversa, que adoraria assistir na íntegra, me fez pensar nos presos do arrastão do dia 9 de janeiro e me perguntar sobre o motivo pelo qual, para certas pessoas, é tão difícil entender que aquilo não é coisa que se faça. E, por isso mesmo, tão inédita na história de nossa justiça.
No dia 10 de janeiro, ao tomar conhecimento dos relatos e queixas dos presos arrebanhados na véspera e depositados em condições desumanas no ginásio da PF de Brasília, o ministro Alexandre de Moraes, numa espécie de wishfull thinking, chamou-os indistintamente de “terroristas” e ironizou: “Até domingo, faziam baderna e cometiam crimes. Agora reclamam porque estão presos, querendo que a prisão seja uma colônia de férias” (aqui).
Recentemente, transcorridos dois meses dos fatos, Alexandre de Moraes e Rosa Weber visitaram o presídio feminino Colmeia (não foram à Papuda). Três dias depois, o ministro declarou que a comida servida há dois meses “é caótica”. Matéria do UOL do dia 9 de março informa que
“Um relato obtido pela reportagem, por exemplo, descreve um cenário de "refeições com larvas, cabelos". Já um dos relatórios da Defensoria diz que a "esmagadora maioria dos reclusos apontou que uma das proteínas fornecidas é absolutamente intragável".
A alimentação é apenas uma das penosas consequências de se arrebanhar mais de duas mil pessoas em locais não preparados para isso, sendo que a imensa maioria delas não deveria ter sido presa como foi nem permanecido presa além da audiência de custódia (de regra, efetuada logo após a prisão).
Todo rigor se compreende em relação aos vândalos e à sua conduta, tão estúpida e delinquente na forma quanto enigmática quanto aos fins. Mas manter presos os demais, por tanto tempo, em péssimas condições, sob severas restrições pelo “crime” de rezarem e cantarem hinos diante do quartel pedindo algo que não tinham o menor poder de fazer acontecer? Francamente!
Então, o ministro fala com a governadora que se compromete a resolver o problema da alimentação dos presos num local que, de fato, não é uma colônia de férias. E lembra, o ministro, haver o STF, em 29 de junho de 2020, apontado como um Estado de Coisas Inconstitucional” a situação dos presídios brasileiros. Você entendeu? Eu não entendi.
A frase de Raymond Aron, mencionada acima, me remete a uma conclusão bem sintética: há coisas que não se explicam. O Brasil é um mostruário de enigmas.
Percival Puggina (78), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site Liberais e Conservadores (www.puggina.org), colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.
Menelau Santos - 16/03/2023 05:12:02
Professor, com sua licença, mais um comentário sobre seu texto, fico me perguntando cadê os nosso anciãos? Além dos representantes legais do povo que deveriam ser nossos parlamentares, mas que um ministro do STF revogou unilateralmente suas respectivas imunidades (pasmem, com sua complacência), teríamos nossos anciãos. Ives Gandra é uma voz que se ouve (meio pálida na minha visão), cadê o Sr. Miguel Reale Jr.? Cadê os nossos juristas mais antigos? Só tem Dr. Ives Gandra? Lei agora tem partido político? Tem Lei de esquerda e Lei de direita? FHC? Será que tá tudo bem pra ele? Roberto Freire? Tá tudo bem pra ele? Só que vejo é que tem muito pouca gente indignada com essa situação de 08 de janeiro.Menelau Santos - 15/03/2023 16:05:20
Professor, o Sr. e outras raras pessoas dentre nossos intelectuais, jornalistas e professores são os que ainda se sentem indignados com essa situação. Na grande mídia absolutamente nada. Tenho um conhecido que é professor, muito capacitado, com pós graduação na PUC e que concorda com esse tipo de situação. Seu texto vem explicar o que para mim até então era inexplicável o pensamento desse colega.Wagner W Lehmann - 15/03/2023 13:31:27
Eu diria monstruário tamanha a sandice dos fatos