• Percival Puggina
  • 25/01/2014
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CASTELOS DE CARTAS

Qualquer idiota com mãos firmes e um par de pulmões funcionando pode construir um castelo de cartas e depois soprar para derrubá-lo. O que aconteceu na Boate Kiss teve muito a ver com as afirmações dessa frase de Stephen King. Aquele local de lazer era um castelo de cartas à espera do sopro fatal. Muitos brasileiros que emigram para o assim dito Primeiro Mundo passam por um período de adaptação. Para uns, é rápido. Para outros, porém, é um tempo de frustração que se encerra com a decisão de retornar às origens. Na essência da adaptação ao cotidiano dos países mais bem organizados, marcando-a de modo decisivo, está a absorção da seguinte regra geral de convivência: as leis valem para todos e não são inconsequentemente desrespeitadas. Isso costuma ser um choque. A ordem que produz costuma ser vista como enfadonha. Para muitos de nós, o respeito às leis, às regras de condomínio, aos preceitos de um contrato, aos costumes locais, cria uma atmosfera irrespirável. No entanto, o Primeiro Mundo é o que é, em grande parte, por causa disso. Em virtude de tão fundamental norma alguns países europeus estão fechando presídios. Há cada vez menos pessoas dispostas a aceitar os riscos inerentes à tentativa de prosperar no mundo agindo no submundo. Em virtude dessa regra certos imigrantes preferem retornar à zorra nacional, aqui onde as leis são feitas para luzirem no papel e não para, de fato, sinalizarem as condutas. No Brasil, o costumeiro desrespeito às leis, regras e costumes vai construindo castelos de carta em toda parte. Há castelos institucionais que vemos ser soprados pela falta de racionalidade, desde dentro e desde fora, comprometendo o funcionamento da República. Há castelos de carta estatísticos e contábeis, feitos para iludir, construídos por governos prestidigitadores. Há castelos de carta empresariais, concebidos para encher o peito de vaidades, de dinheiro os bolsos de alguns, e de problemas a vida de muitos. Há castelos de carta em políticas públicas, ineficientes ante a realidade para a qual foram concebidas. E há castelos de carta como a Boate Kiss, à espera do sopro quente da morte, à espera da ignição lançada ao ar na madrugada de 27 de janeiro de 2013. Irving D. Yalom, no livro O dia em que Nietzsche chorou, afirma que se subirmos suficientemente alto chegaremos em um nível a partir do qual as tragédias deixam de parecer trágicas. Ele estava errado. Não há nível a partir do qual deixe de ser pungente o diuturno sacrifício humano nas estradas e ruas do país, nos becos das drogas, nos presídios que o Estado já delegou ao comando dos próprios reclusos, nas filas de espera do SUS, na indigente atenção à saúde pública, no mau agouro enfermiço da falta de saneamento básico. Não há altura nem distância a partir das quais o incêndio da Boate Kiss deixe de nos queimar a todos. Ele é uma consequência doída, ardida na alma, de uma outra tragédia, que quase não vemos: nosso hábito de dar um jeitinho e driblar a lei. Até que o país nos caia na cabeça. ZERO HORA, 26 de janeiro de 2014