• Pe. Acchylle Rubin
  • 02/03/2015
  • Compartilhe:

VISÃO CRISTÃ DA HISTÓRIA

A filosofia da história ocupou-se arduamente em buscar um sentido para o desenrolar através dos tempos dos acontecimentos humanos. Não conseguiu, porém, estabelecer um consenso entre os estudiosos. Não obstante, surpreende que o paradigma “história”, ou “histórico”, tenha alcançado, na cultura atual, tanta importância no pensamento e no agir das pessoas.

Entretanto, a história, com a vinda ao mundo de Jesus, ganha, assim como toda a criação, um sentido novo e original.
Em verdade, o “sinal de contradição” e de “queda e soerguimento para muitos” (Lc 2,34) se manifestou logo no modo novo de julgar e agir daquele “Menino”. Essa novidade, com efeito, fez com que os homens do templo, como os próprios discípulos, tivessem tanta dificuldade para entendê-lo. Os primeiros não o suportaram e terminaram crucificando-o.
Acontece que a alegoria da Caverna de Platão, entre outros significados, mostra que a sociedade não suporta alguém que venha tirá-la de suas ilusões. Platão deverá ter pensado em Sócrates. Muito mais, porém, devemos pensar em Jesus. Ele veio tirar-nos das ilusões da história, mostrando-nos que a história e a criação toda, começavam a ter, a partir dele, outro sentido.

Sobre esse sentido novo da história encontramos valiosos comentários em um autor do século II de nossa era nos deixou escrito numa carta chamada de Carta a Diogneto, publicada pela editora Vozes, em 2003.

É surpreendente como essa carta nos apresenta os cristãos como pessoas “trans-históricas”. Nos capítulos V e VI se lê que os cristãos são “paradoxais”: iguais e diferentes, ao mesmo tempo, dos demais cidadãos históricos. São iguais em tudo o que diz respeito à pátria comum: habitam nas mesmas cidades; empenham-se na política do estado; seguem os mesmos costumes, a mesma língua; vestem-se como os demais e, como os demais, também se alimentam.

Não obstante, “moram na própria pátria, mas como peregrinos”, “ cidadãos, de tudo participam, porém, tudo suportam como estrangeiros”. “Toda terra estranha é pátria para eles e toda pátria, terra estranha” (pg.23); “estão na carne, mas não vivem segundo a carne. Se a vida deles decorre na terra, a cidadania, contudo, está nos céus” (pg.24). Portanto, paradoxais, iguais e diferentes, muito diferentes.

Na introdução da edição, citada acima, Dom Fernando A. Figueiredo comenta que a carta nos fala do “Hoje Divino” da História da Salvação, para nos dizer que “o cristão se torna contemporâneo do Cristo”, ou, melhor, Cristo é sempre nosso contemporâneo (pg.14).

Em outras palavras, isso corresponde a dizer que a História da Salvação perpassa e transcende a história humana. Goza de um princípio de perenidade. Representa o “Hoje Divino”, sempre “contemporânea”, independente dos fatos histórico-sociológicos.

Portanto, a História da Salvação em Jesus Cristo é paradoxal. Ela transcende os critérios da filosofia na busca de sentido para os fatos seqüenciais da história humana. Até, por ser sempre contemporânea, nem é propriamente história, ultrapassa a história.

Em nossos dias, tal afirmação é escandalosa, acostumados que se está a submeter tudo, também como método teológico e pastoral, aos critérios dos acontecimentos histórico-circunstanciais.

O novo sentido da história, depois de Cristo, não é levado suficientemente em conta. O próprio critério do “sinal dos tempos”, não é visto sob esse novo sentido. E assim, o domínio da filosofia da história e da sociologia impede que se veja a contemporaneidade da História da Salvação, a contemporaneidade de Jesus Cristo, ontem, hoje e sempre.
Qual o prejuízo para a vida cristã e para a evangelização? A vida cristã se torna apenas uma lembrança histórica, ou uma ciência sujeita à pura hermenêutica e não um acontecer agora, na vida dos cristãos. A evangelização, por sua vez, passa a esbanjar energias em bens materiais e esforços humanos, nas infindas análises e atenções voltadas para os fatos sócio-históricas das conjunturas sociais do momento e perde de vista o que é mais importante, a verdadeira natureza da vida cristã, a contemporaneidade de Cristo e da vida cristã.

Como, então, se entende essa visão paradoxal? A Carta responde no capítulo VIº com uma analogia que nos aproxima da compreensão. Compara o cristão, frente à sociedade profana, como a alma em relação ao corpo. A alma transcende o corpo, nos dois sentidos do transcender, tanto por encontrar-se em todas as partes, animando o corpo todo, quanto por ultrapassar a materialidade do corpo.

Assim são os cristãos. Em primeiro lugar, eles estão em toda parte: “Encontra-se a alma em todos os membros do corpo, e os cristãos dispersam-se por todas as cidades do mundo” (pg.24). Em segundo lugar, como a alma “habita no corpo, mas dele não provém, os cristãos habitam no mundo, mas não são do mundo” (pp. 24-25).

Prosseguindo na comparação, o autor da Carta fala do modo de acontecer do ser cristão na sociedade profana e de sua função. O acontecer do ser cristão é, ainda, semelhante ao da alma: Assim como “a carne odeia a alma e a combate... também o mundo odeia os cristãos”... mas, “a alma ama a carne... assim os cristãos amam os que os detestam” (pg.25). A função, entretanto, do ser cristão é também semelhante à da alma: Como “a alma é quem faz a coesão do corpo”, assim também “são eles (os cristãos) que sustêm o cosmo”.
A comparação da alma e da carne nos recorda a parábola do fermento e da massa (Mt 13,33). Jesus disse que o Reino de Deus é o fermento que faz levedar a massa. A massa levedada, enquanto massa, é igual a todas as massas, mas enquanto levedada é outra massa bem diversa. Assim, a sociedade, enquanto sociedade, é igual a todas as demais, mas, enquanto permeada por vida cristã, será bem outra sociedade.

Ademais, o fermento permanece invisível, assim como a ação dos cristãos na sociedade. A Carta a Diogneto, seguindo sua comparação, afirma que, a alma invisível anima um corpo visível, assim como o cristão, no seu “culto a Deus, permanece invisível” ao mundo e, entretanto, o permeia, o anima e o transforma, transcendendo-o, porém, tanto por estar em toda parte, como por estar criando, sem ilusões, “outro mundo possível”, diferente do “sonhado” pelos sociólogos e invisível para aqueles a quem lhes falta órgão para ver (Cf Lc 17,20; Mc 4,11-12; Mt 11,25).

E se a queda do Império Romano se explicasse muito melhor, graças a um processo invisível de infiltração, como acontece com os dendrólitos, árvores feitas pedras, por semelhante processo?

O Império não ruiu graças ao empenho dos cristãos em “ações sociais”, buscando a troca das estruturas injustas de então, mas ruiu por um processo de infiltração pelo fermento evangélico. De tal sorte aconteceu que, quando o Império se deu conta, a mãe do Imperador era, nada menos que Santa Helena.

O cristianismo não foi concorrente à sociedade civil. Não precisou pensar em nenhuma pressão física ou moral. A pressão foi espiritual. Melhor, foi o “brilho” da vida cristã, manifestação de seu lado ontológico, fermento invisível, que minou a sociedade civil, atraindo os agraciados de sensibilidade espiritual que acorreram pressurosos.

Assim, minha apreciação a respeito dos “padres midiáticos” é a seguinte: seu sucesso não se deve ao poder da comunicação, mas ao testemunho por atitudes e palavras de uma experiência do Espírito prometido por Cristo aos que a pedissem (Lc 11,13).

O Papa, em sua rápida passagem entre nós, definiu a evangelização como um processo de atração, a exemplo do que Jesus disse e fez: Quando eu for levantado da terra, atrairei todos a mim (Jo 12,32).

Concluindo, esse processo transformador do ser cristão representa o lado transcendente da História da Salvação, da vida cristã no mundo. O Evangelho representa novo sentido da vida, da sociedade e da história humanas