• Luiz Carlos Da Cunha
  • 24/04/2016
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SHAKESPEARE AOS 400 ANOS DE SUA MORTE (23/ABRIL/1616)


“Percamos o Império, mas salvemos o livro único, Shakespeare”. Carlyle

Há quatrocentos anos morria o maior dramaturgo da língua inglesa. Singularmente no mesmo dia em que nasceu em Stratford-on-Avon. Ainda jovem ligou-se a grupos teatrais, populares na época em que não havia cinema o teatro era presença indefectível em todo lugarejo. Principiou sua carreira de escritor criando peças cômicas. Quando descobriu as tragédias gregas de Sófocles, Eurípedes traduzidas ao latim, seu interesse literário derivou para o épico e histórico. A partir desta descoberta sua imaginação e criatividade dramática disparam num suceder de peças imortais que abordam todos os sentimentos humanos; esmiúçam o ódio, o amor, a calúnia, o ciúme, o cinismo, a angustia, a ambição, o poder, a honra. Todas estas idiossincrasias já perfilavam o teatro dramático grego. Shakespeare não plagiou, ele inspirou-se naquelas tragédias adaptando-as a língua falada inglesa, quando o latim predominava como idioma vernáculo; Thomas Bacon, homem de ciência escrevia em latim o idioma universal sob o primado da Igreja Católica e erudito da aristocracia européia, com ênfase na realeza britânica, cujos personagens históricos permeados por outros ficcionais de textura psicológica foram imortalizados pelo seu gênio, consagraram-se encarnações do ódio e do amor extremados ao paroxismo da loucura humana se derramam nas peças rei Lear, MacBeth, Ricardo III, Henrique VIII. No teatro burilou a língua inglesa onde as palavras soam na musicalidade apropriada ao momento e a precisão da idéia. Shakespeare navega no Renascimento literário tal como Dante firma o idioma italiano padrão literário, Cervantes nas figuras de Don Quijote e Sancho Pança espelham a “alma da civilização ocidental”, no dizer de Santiago Dantas, alicerça o classicismo da língua espanhola. São três artífices do idioma nacional, divisores do antes e depois de cada um na evolução da literatura de suas nações. Camões o equivalente em nossa língua infelizmente foi se esvanecendo como um luminar distante restrito a Portugal. Não se sustentou na altitude consagradora e perene dos seus iguais europeus, como merece. Entre os brasileiros permanece tão desconhecido de nossos estudantes universitários como os hieróglifos de Tutancâmon. Certamente o conhecimento do latim proporcionou a Shakespeare as traduções gregas dos clássicos dramaturgos Sófocles, Eurípedes e Aristófanes ensinaram-lhe a técnica teatral de hipnotizar o espectador ao ver representadas nas cenas fictícias suas próprias inquietações psicológicas, os paradoxos emocionais da espécie humana que permanecem insolúveis pro tempore. Em Romeu e Julieta ou O mouro de Veneza Shakespeare se inserem na atmosfera social da Itália e se apóiam em histórias venezianas vertidas ao inglês. Daí a reprodução perfeita do cenário social e urbano e familiar veneziano da época onde se desenrolam a tragédia e as comédias.

Os personagens shakespearianos conflitam no palco os sentimentos dramáticos da condição humana, expostos na rudeza e paroxismo das paixões. Hamlet – o príncipe da Dinamarca encarna a vingança. Othelo - o rei enlouquecido pelos ciúmes sutilmente instilado à sorrelfa pelo êmulo vira homicida da mulher amada. Brutus – o político padrão e espelho da moral republicana - mata o imperador Cesar que anelava ser rei. Romeu e Julieta – os amantes apaixonados que se desenlaçam no suicídio para vencer suas famílias rancorosas e inconciliáveis. A morte igualmente sentida pelos inimigos é o preço do arrependimento.

O bardo escreveu, estima-se, mais de cem peças teatrais. Setenta chegaram impressas até ao conhecimento documental do presente.

Carl Sagan, o cosmólogo, lamentava tenham se perdido outras maravilhas no tempo. A propósito da referência ao cientista, devo apontar com admiração e gáudio a recorrência de personalidades científicas anglo - saxônicas aos pensamentos de Shakespeare. Recordo de Stephen Hawking, Richard Dawkings, James Watson (Nobel de medicina de 1954) ou Bertrand Russel abrindo suas teses com epígrafes do bardo inglês. Citarei algumas: As horas silenciosas se aproximam (Ricardo III); Não se coloque entre o ladrão e sua presa (Rei Lear); Quando os três nos encontraremos de novo? (MacBeth); O que foi que viste no sombrio passado no abismo do tempo? Ser ou não ser? Eis a questão; Há mais mistérios entre o céu e a terra do que imagina nossa vã filosofia; Há algo de podre no reino da Dinamarca (Hamlet) Glorias vãs deste mundo, pompas fúteis. Tenho-vos ódio. (Henrique VIII); Posso viver numa casca de noz e me sentir o rei do universo. (Epígrafe de Breve historia do tempo, de Hawking).

Explica-se a familiaridade dos cientistas ingleses pela obra shakespeariana pela presença da literatura nos currículos universitários. Trata-se de condição inarredável a todo acadêmico saído de Oxford falar e escrever com elegância e clareza a língua materna, exigência normal na formação científica. Não há conflito entre literatura e ciência. Escolho dentre tantas peças de sua lavra, no fito de homenageá-lo aos 400 anos de sua morte, a tragédia histórica Júlio Cesar. O tema político que nela é o cerne, guarda a perenidade dos dramas políticos de todos os tempos. Podemos encontrar aqui e ali nas falas dos personagens conflituosos a semelhança com os confrontos e contradições e desmazelos hodiernos. A verossimilhança não é proposital; as ilações derivam de cada juízo particular no viés tendencioso de cada qual. Conhecer Shakespeare e sua arte pode contribuir para entender a política coeva, aos estudiosos das relações humanas, um instrumento elucidativo das paixões humanas desatadas no jogo pelo poder. Emocionante captar o ritmo crescente da oratória subversiva em Júlio César- o imperador temido e respeitável - que a ambição desmedida e a volúpia em vestir a coroa real, desafiam os brios republicanos. Para a máxima audácia, a máxima pena: Lex romanorum.

Seu filho adotivo Brutus, requestado pelos optimates senatoriais, assume a liderança da revolta. O dramaturgo faz deste o personagem principal, o epicentro do drama, esculpido no conflito moral e psicológico imortalizado na figura moral do político republicano. A subordinação do interesse individual ao imperativo da lei legitimada pelo Estado, e o Estado legitimado pela lei, e limitado em seu poder na igualdade de direitos cívicos. César ameaçou o estado de direito quando ambicionou a realeza. A justiça não era um poder independente; ao senado cumpria resolver o conflito entre o executivo amparado na força das Legiões e a corporação legislativa. Porém, quem desafiar Cesar sem o respaldo das Legiões, dos generais e senadores, está fadado ao cutelo. Assim funcionava a justiça governamental do Império Romano. Para cortar a ambição de Cesar impunha-se antecede-lo na ação. Na execução do plano letal de justiciamento, Bruto lidera o cortejo funéreo com aparência de séquito de honra, seguindo Cesar no anfiteatro do Senado. De chofre o atacam. Em golpes sucessivos de espadas e punhais, um a um os confidentes sangram o desavisado imperador. O grande César, imperador do mundo demora seu último olhar na face do último agressor: Até tu Bruto? Na história da humanidade a luta pelo poder adulcora os crimes por justificativas morais. Abro aqui um parêntese enfático: Eça Queiroz pode surpreender os apaixonados pela Marselhesa quando escreveu sobre a Revolução Francesa; “Eram sanguinários, mas exerciam a crueldade sob a ilusão do bem universal”.

Ao final de Júlio César Bruto, o honrado Bruto dirige-se ao povo justificando o crime. Agiu em defesa da república. A multidão se solidariza com o honrado Bruto. Morra Cesar! Seguiu-lhe o discurso do amigo de Cesar, Marco Antônio. É o momento da oração apoteótica, o elogio de Cesar, o discurso emocionante do talento político capaz de torcer a crença popular adversa na direção oposta da crença popular. Inverte-a seu favor. É a arte da eloqüência. A mesma claque que há pouco aplaudia Bruto, se volta contra ele em fúria repentina.

Em 1954 na crise provocada pelo suicídio de Vargas, seu adversário Carlos Lacerda, escritor primoroso, traduziu a peça política de Shakespeare com a eloqüência oratória de que era exímio portador. Transcrevo frases pinçadas mais sugestivas.

Bruto - Se houver aqui um amigo de César perguntar por que Bruto se levantou contra ele, eis minha resposta: Não foi por amar menos César, mas por amar mais a Roma. Lágrimas para sua amizade, alegria para sua fortuna, honra para seu valor e morte por sua ambição.

Marco Antônio (trechos selecionados) – Vim para fazer o enterro de César, não para elogiá-lo. O mal sobrevive aos homens que o fazem, mas o bem fica enterrado com seus ossos. O nobre Bruto vos contou que César era ambicioso. Se ele foi, grave falta era a sua. Gravemente ele a espiou. Até ontem a palavra de César podia resistir o mundo inteiro. Hoje ei-lo aí, sem que ante seu cadáver se curve o mais humilde. Vede este manto? O furo deixado pela adaga de Cássio; Vede o furo deixado pela adaga de Cássio; contemplai o estrago feito pelo invejoso Cássio. Através deste furo apunhalou-o Bruto. Foi o golpe mais ingrato. De todos, foi o golpe mais ingrato, pois quando a Bruto viu o nobre César, a ingratidão mais forte que o braço dos traidores.

Este discurso inverteu num relance a crença popular. De solidariedade a Bruto virou a dvinização de Cesar. Assim redirecionando a história. Cesar morto vence Bruto.

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Sonetos
Impossível esquecer neste sumário sumaríssimo o significado dos sonetos na obra literária do poeta. Deixou uma centena lapidada em brilhantes versos. A motivação é teimosamente a senectude e a superação da velhice pela herança filial. Não há em qualquer deles apelo a Deus. O soneto é a expressão poética definida por dois quartetos e dois tercetos; nos primeiros apresentam-se parâmetros da idéia central; o último terceto revela o fecho de ouro. É o sublime. Todos os versos são rimados e obedecem a métrica definida. Obedecidas estas condições definidoras que desafiam o talento dos grandes poetas. Shakespeare consagrou nos sonetos a mais excelsa melodia da palavra. Escolhi dois traduzidos pelo escritor e poeta brasileiro Ivo Barroso. Certo estou de que não pode haver melhor homenagem aos quatrocentos anos da morte de Shakespeare, vinda do Brasil e da língua portuguesa que esta versão portuguesa de seus sonetos:

1 - Dos seres ímpares ansiamos a prole / Para que a flor do belo não se extinga, / E se a rosa madura o tempo colhe / Fresco botão sua memória vinga. / Mas tu, que só com os olhos teus centrais / Nutres o ardor com as próprias energias / Causando fome onde a abundância jaz / Cruel rival, que o próprio ser crucias. / Tu, que és do mundo hoje o galardão / Arauto da festiva Natureza / Matas teu prazer inda em botão / E sovina, esperdiças na avareza / Piedade, senão ide, tu e o fundo / Do chão, comer o que é devido ao mundo.

2 – Quando o assédio dos quarenta invernos / Se cavarem as linhas de teu rosto / Da juventude os teus galões supernos / Pobres andrajos se tiverem posto /Se então te perguntarem pelo fausto / De teus dias de glória e de beleza / Dizer que tudo jaz no olhar exausto, / Opróbrio fora, encômio sem grandeza. /

Mais mérito terias nessa usança / Se pudesses dizer: “Meu filho há de / Saldar-me a dívida, exculpar-me a idade” / Provando que a beleza é tua herança. / Fora tornar em novo as coisas velhas / E ver o sangue quente enquanto engelhas.

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PS. Eu não abandonei o trema; não obedeço a picaretagem de acadêmicos subsidiados. Quem pode acompanhar com os versos do original inglês, valorizará o talento do tradutor.