“A vida perdeu para a morte, mas a memória ganha seu combate contra o nada” (Tzevetan Todorov, “Os Abusos da Memória”)
Este é um artigo baseado no livro de Anne Applebaum “Gulag, uma História dos Campos de Prisioneiros Soviéticos”. QUANTOS morreram? É uma pergunta até hoje sem resposta.
Embora a União Soviética dispusesse de milhares de campos de concentração e embora milhões de pessoas tenham passado por eles, durante décadas, ninguém, a não ser meia dúzia de burocratas, soube qual era o número de vítimas. Estimar esse número era um exercício de pura adivinhação enquanto a URSS ainda existia. Hoje em dia, o cálculo pode ser feito por suposição. QUANTOS?
No livro The Great Terror (O Grande Terror), de 1968, na época um relato original e inovador dos expurgos soviéticos, o historiador Robert Conquest estimou que a NKVD prendeu 7 milhões de pessoas em 1937 e 1938. Em Origins of the Purges (Origens do Expurgo), uma narrativa “revisionista” de 1985, o historiador J. Areh Getty falava apenas em “milhares” de presos nesses mesmos dois anos. QUANTOS?
Os prisioneiros deixavam os campos por vários motivos: porque morriam, porque fugiam, porque tinham sentenças curtas, porque haviam sido liberados para o Exército Vermelho, ou porque passavam a ocupar cargos administrativos nesses mesmos campos. E, freqüentemente, os velhos, os doentes e as mulheres grávidas eram anistiados. Mas a isso se seguiam, invariavelmente, novas ondas de prisões. Por volta de 1940, 8 milhões de prisioneiros já haviam passado pelos campos. Entre 1929 e 1953, estima-se que 18 milhões de pessoas passaram pelos campos. O próprio Nikita Kruschev dizia que 17 milhões de pessoas haviam passado pelos campos de trabalho forçado entre 1937 e 1953. Mas, afinal, QUANTOS?
Todavia nem sempre esses números proporcionam uma resposta para o que as pessoas realmente querem saber. QUANTOS morreram? O que as pessoas querem saber é QUANTOS morreram desnecessariamente em conseqüência da Revolução Bolchevique, do Terror Vermelho, da Guerra Civil, da fome gerada pela política brutal de coletivização, das deportações em massa, das execuções em massa, dos campos da década de 1920, dos campos de 1960 a 1980, e também dos campos e das execuções em massa do reinado de Stalin. Nesse caso, os números não são somente muito maiores, mas são uma questão de pura conjectura. Os autores do Livro Negro do Comunismo falam em 10 milhões de mortes. Mas, afinal, QUANTOS?
Entretanto, mesmo que chegássemos a esse número, ele também não poderia contar toda a história de sofrimento. Nenhum dado oficial pode retratar a mortalidade das viúvas, dos filhos e dos pais idosos que ficaram para trás, uma vez que a morte deles não foi computada. Durante a guerra os idosos morriam de fome sem os cartões de racionamento; se o filho condenado não estivesse extraindo carvão em Vorkuta, eles poderiam ter continuado vivos. As crianças sucumbiam às epidemias de tifo e sarampo nos orfanatos gelados e mal equipados; se as mães não estivessem costurando uniformes em Kengir, elas também poderiam ter sobrevivido. QUANTOS?
E nenhum número é capaz de retratar o impacto cumulativo da repressão stalinista na vida e na saúde de todas as famílias. Um homem foi julgado e morto como “inimigo do povo”; a mulher foi levada para um campo de concentração como “membro de uma família inimiga”; os filhos cresceram em orfanatos e se uniram a gangues de criminosos; a mãe morreu de desgosto e mágoa; os primos, as tias e os tios romperam relações com a família para que não fossem tidos como “corrompidos”. Famílias separadas, amizades desfeitas; o medo pesava muito sobre as pessoas, mesmo quando elas não morriam. QUANTOS?
No final, estatística alguma poderá jamais descrever completamente o que aconteceu. Nem os documentos arquivados, nos quais os atuais pesquisadores se baseiam. Todos os que escreveram sobre o Gulag sabem que isso é verdade. Eis o depoimento de um desses autores, que dá a palavra final sobre “estatística”, “arquivos” e “processos”.
Em 1990, o escritor Lev Razgon obteve autorização para ver o próprio processo, uma série de documentos que descreviam a sua prisão e a prisão de sua primeira mulher, Oksana, como também a de diversos membros da família. Depois, de lê-lo, Lev Razgon escreveu um pequeno ensaio:
“Já fazia muito tempo que eu tinha parado de virar as páginas do processo e elas estavam do meu lado havia mais de uma ou de duas horas, esfriando com os pensamentos. Meu guarda (o arquivista da KGB) começa a pigarrear sugestivamente e a olhar para o relógio. É hora de ir. Entrego o processo e ele é negligentemente jogado de novo num saco plástico. Desço as escadas, passo pelos corredores vazios, pelas sentinelas e chego à praça Lubyanka.
São apenas cinco horas da tarde, mas já está escurecendo, e uma chuva fina e silenciosa cai ininterruptamente. Fico na calçada sem saber o que fazer. Como é horrível não acreditar em Deus e não poder ir a uma igrejinha e ficar lá, acolhido pelo calor das velas, olhando para Cristo na cruz. Como é horrível não poder falar e fazer as coisas que tornam a vida do crente mais suportável.
Tirei o chapéu e gotas de chuva ou lágrimas rolaram pelo meu rosto. Tenho 82 anos e aqui estou, vivendo tudo outra vez. Ouço a voz de Oksana e a da sua mãe. Lembro-me delas, de cada uma. E se eu continuei vivo, essa é minha obrigação”.
Esse foi um dos que sobreviveram. Mas, afinal, QUANTOS morreram?
Historiador
Notas:
Do livro “Gulag, uma História dos Campos de Prisioneiros Soviéticos”, de Anne Applebaum, Prêmio Pulitzer 2004 não ficção.