Arthur Raskopf
Muito se discute acerca da possibilidade de adoção do “sistema eleitoral de maioria simples em distrito uninominal” (mais conhecido como “voto distrital”) para as eleições da Câmara dos Deputados, da Assembleia Legislativa dos estados e da Câmara de Vereadores dos municípios.
O voto distrital é um exemplo de “sistema eleitoral majoritário” (isto é, um sistema que tem como propósito assegurar que aqueles candidatos que tenham recebido mais votos sejam os eleitos). No voto distrital, portanto, a regra é clara, simples e direta: é eleito aquele que receber mais votos em determinado “distrito eleitoral” (podemos entender como localidade, região ou até estado). Parece justo, não? Se ganhar dos concorrentes de determinada localidade, ganha a cadeira.
Todavia, como é possível depreender do primeiro parágrafo do texto e da própria realidade das eleições (para aqueles mais atentos ao sistema vigente), essa não é a realidade brasileira atual para as Câmaras mencionadas, sendo somente o que ocorre no Senado (nesse caso, o “distrito eleitoral” é o estado – do RS, por exemplo).
Nas outras Câmaras citadas, o que nós temos é um “sistema proporcional”, em que as cadeiras não são dos “candidatos vencedores” das eleições, mas, sim, dos “partidos vencedores”. A cadeira pertence ao partido e não ao parlamentar. Não é à toa que, se o parlamentar sai do partido, ele, em regra, perde o mandato.
O que acontece nesse sistema proporcional, então, é que se analisam quantos votos válidos existiram no total e se faz um cálculo a partir da quantidade de cadeiras disponíveis (temos, aí, o “quociente eleitoral” – essa é a quantidade de votos que um partido precisa para eleger um deputado ou vereador). Em seguida, divide-se a quantidade de votos recebida por um partido por esse “quociente eleitoral”, chegando-se à quantidade de cadeiras que cada partido terá direito (o “quociente partidário”). Somente depois, é que se analisam os candidatos mais votados em cada partido, que ocuparão as vagas que o partido tem direito.
É possível perceber, facilmente, que esse sistema proporcional produz algumas distorções bastante graves, que prejudicam a sistemática representativa brasileira. Se não, vejamos.
Foquemos na Câmara dos Deputados e nas Assembleias Legislativas dos estados. Em primeiro lugar, as campanhas costumam ser absurdamente caras, porque o “distrito eleitoral” é o estado inteiro. Então, para se eleger, um deputado, a princípio, precisa fazer campanha no estado inteiro, gastando-se elevadas cifras (média de 300 mil para deputado estadual e um milhão para federal). Se juntarmos isso com a proibição da doação de pessoas jurídicas, temos um caso bem sério para os cofres públicos.
Em segundo lugar, vemos um forte déficit de representatividade, porque, uma vez que, em primeiro plano, “vota-se nos partidos e não nos candidatos” (lembrando que é isso que acontece: inicialmente, todos os votos “recebidos” por todos os candidatos de um partido vão para um “saco único”, para ver quantas cadeiras o partido terá direito, e, somente depois, é que os candidatos mais votados daquele partido recebem as cadeiras), acontece frequentemente de um eleitor, que teve o seu candidato não eleito, acabar elegendo alguém do mesmo partido, mas que ele nem conhece. E esse problema fica ainda pior se tivermos a possibilidade de “coligações” ou “federações” partidárias (compartilhamento de votos entre partidos, que se “unem” para as eleições), porque daí esse eleitor pode acabar elegendo alguém de outro partido, que pode nem defender a sua posição política. Como cobrar pelo voto recebido se não se sabe quem foi o eleito por aquele voto no final?
E em terceiro lugar, o sistema atual favorece(u) o surgimento de um número sem fim de partidos e que sustentam um absurdo “presidencialismo de coalizão” (um “troca-troca” – de cargos, dinheiro, aprovações legislativas e poder – entre o Presidente e os partidos da “base aliada”, comandada sempre pelo “centrão”).
Todos esses problemas acima descritos não existem no “voto distrital”. Primeiro, porque, se a campanha é local (ou regional), torna-se menos cara do que uma campanha feita no estado inteiro. Segundo, porque, uma vez que ganha o mais votado no “distrito eleitoral”, o eleitor sabe exatamente quem ganhou e, consequentemente, quem cobrar (isto é, ainda que o eleitor tenha votado em um candidato derrotado, é aquele parlamentar que foi eleito que representa os interesses diretos da região e que deve ser cobrado para tanto). E terceiro, porque, se as eleições tiverem somente uma cadeira em disputa, a tendência é que poucos (talvez somente dois partidos) compitam “de verdade” pela vaga (e isso quem diz é um cientista político francês, bastante renomado, em uma de suas “leis”), o que contribui, por conseguinte, para diminuir o número de partidos existentes no país e esse “troca-troca” comandado pelo “centrão”. Parece uma boa ideia, não?
O “voto distrital”, contudo, também possui alguns problemas. Analisemos, agora, os principais: (i) a demarcação ou delineamento do distrito e o favorecimento a certos partidos; (ii) a não garantia de que o candidato eleito terá mais de 50% dos votos válidos do distrito; e (iii) a pouca representação de algumas minorias sociais.
A demarcação ou delineamento do distrito pode ser algo bastante problemático quando se trata do voto distrital. Nos Estados Unidos, país que utiliza essa modalidade de voto, é muito comum, depois que um candidato ganha a eleição em um estado, que ele proponha mudanças na demarcação dos distritos (para favorecer o seu partido, que talvez tenha sido desfavorecido no governo anterior, porque era de outro partido).
Dessa forma, é possível perceber que, se o desenho dos distritos pode ser alterado livremente pelo gestor de plantão e sua legislatura aliada, o mais provável é que ele seja modificado para favorecer os aliados de quem está no poder no momento, mesmo que isso gere formatos absurdos. A essa prática, dá-se o nome de gerrymandering, que surgiu após um governador americano do século XIX, Elbridge Gerry, desenhar distritos e um deles ficar com o formato de uma salamandra (salamander, em inglês).
Para contornar isso, é preciso encontrar um meio de evitar a discrepância populacional entre os distritos e garantir a máxima igualdade de competição entre os partidos. Isso é bem difícil, porque todos os partidos querem maximizar as suas vitórias e fazem isso a todo custo, mesmo que os distritos criados sejam absurdos. Uma possibilidade seria, talvez, a de aumentar o quórum de votação para a modificação de distritos, porém, se já existentes os distritos absurdos, com a gigante maioria dos eleitos de um mesmo partido ou de um grupo de partidos aliados, certamente, eles não terão interesse em prejudicar a sua situação favorável e tentarão, inclusive, melhorá-la ainda mais, não importando muito o quórum necessário.
Uma segunda problemática que pode ser apontada no voto distrital é a não garantia de que o candidato eleito terá mais de 50% dos votos, isto é, que a “maioria absoluta” do distrito terá votado naquele vencedor. O voto distrital, a princípio, trabalha com a esquemática de “maioria simples” (ganha o mais votado em um distrito e isso independentemente de ter atingido 50% dos votos). Basta que ganhe dos demais concorrentes. Isso consiste em um problema no tocante à representatividade/legitimidade, porque não pode ser aceitável que um candidato que represente uma região não tenha obtido pelo menos 50% dos votos dos eleitores daquela localidade.
Se o voto distrital fosse o sistema vigente para a Câmara dos Deputados e Assembleias Legislativas, o que deveria se fazer é um segundo turno entre os dois mais votados em um distrito, caso um deles não tivesse obtido 50% dos votos no primeiro turno. Essa saída possibilitaria atingir uma maior legitimidade democrático-representativa, mas sem envolver maiores custos, porque as eleições de governador e presidente já têm dois turnos e bastaria que mais uma votação fosse inserida nesse segundo turno já existente.
Por fim, temos a polêmica da representação das minorias. Esse tipo de argumento é o mais forte que é utilizado para defender o “sistema proporcional” (vigente no Brasil atualmente e que se opõe aos sistemas majoritários como o voto distrital). Se se buscasse apenas as maiorias em cada distrito, a probabilidade é quase que total de que nenhum “representante de minoria” fosse eleito no final. A princípio, ganharia nos distritos sempre um candidato “padrão”, que não representaria nenhum grupo minoritário da sociedade. No caso do sistema proporcional vigente, mesmo que não elejam muitos, as minorias podem se juntar e eleger pelo menos alguns representantes.
E para contornar esse último problema, foi elaborada a proposta de voto distrital misto: metade das cadeiras em disputa são preenchidas com voto proporcional e a outra metade com voto distrital. Tenta-se buscar o melhor dos dois mundos, todavia, não devemos esquecer que, se utilizarmos os dois, temos que lidar com os problemas dos dois, havendo mais com o que se preocupar. O gerrymandering ainda poderá se fazer presente, bem como o não atingimento dos 50% dos votos, necessitando-se de um segundo turno; além das caras campanhas, do déficit de representação democrática e da existência de um número muito grande de partidos no que diz respeito à votação proporcional.
No final, o voto distrital pode ser uma alternativa viável, mas é preciso que a sua implementação seja bastante estudada e debatida, para que cheguemos a um sistema o mais próximo do ideal. Importá-lo exatamente como existe em outros países é uma péssima alternativa, porque é necessário, antes, analisar as especificidades do caso brasileiro. Do contrário, podemos ter um sistema ainda pior do que o existente atualmente.
* O autor é Analista de Política e estudante de Direito na USP