• Francisco Pompeu
  • 25/11/2014
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O SISTEMA FINANCEIRO É CAPITALISTA?

 

A crise econômica de 2008 levou muitos comentaristas apressados a declarar a morte do liberalismo. Alguns mais exagerados chegaram a enxergar a queda de um outro muro depois daquele de Berlim, o de Wall Street. A economia de livre mercado teria demonstrado sua ineficiência, sua incapacidade de prover segurança e desenvolvimento.

Entretanto, um olhar mais atento nos leva a conclusões opostas. É aceito amplamente que a crise teve origem no sistema financeiro. Vejamos algumas características deste sistema e investiguemos se realmente ele atende aos requisitos mínimos para ser classificado como de livre mercado.

1. O produto básico com o qual lida o sistema financeiro é a moeda. Há tempos nos diversos mercados a moeda não passa de papel pintado, de curso forçado, emitido de forma monopolista pelos diversos governos, sem nenhum tipo de lastro ou garantia real. A moeda pode ser criada em qualquer quantidade pela autoridade emissora, tendo, portanto, seu valor amplamente manipulado pelo governo. Eventualmente, como demonstrado em inúmeros episódios de hiperinflação ao longo da história, a moeda pode ter seu valor reduzido a zero, deixando de ser um bem econômico. Num ambiente de livre mercado haveria várias moedas concorrentes, lastreadas em ouro e prata, e os consumidores escolheriam livremente a de sua preferência, baseados na maior ou menor confiança em seus emissores.

2. Os bancos e instituições financeiras que atuam neste mercado somente podem fazê-lo com autorização expressa dos governos. Os entes governamentais distribuem para, alguns escolhidos, cartas patentes que habilitam seus detentores para as operações com o produto moeda e seus derivados. Portanto não há livre competição nem genuína liberdade no acesso de empresários a este mercado. Há uma barreira artificial à entrada neste mercado, erguida pelo poder de coerção governamental.

3. As regras para atuação no mercado financeiro são estritamente moldadas, controladas e fiscalizadas pelos órgãos governamentais. No âmbito nacional o controle é exercido pelos bancos centrais, enquanto no internacional os agentes financeiros se submetem a regras como as configuradas no Acordo de Basiléia. Não há livre iniciativa nem liberdade empresarial nos tais mercados financeiros.

4. O preço fundamental nos mercados financeiros, a taxa de juros, é definido pelos bancos centrais. Não há, portanto, o processo de livre negociação com a oferta e a demanda de moeda definindo o nível dos preços, situação típica dos mercados livres capitalistas. Num mercado sem intervenção, os preços são resultado das ações e das informações de milhões de agentes num processo de interação dinâmica em contínua mutação. Ao mesmo tempo em que são definidos pela ação dos empresários, os preços de mercado guiam e informam a atuação empresarial, indicando as iniciativas economicamente viáveis. Claro que a taxa de juros definida pelos bancos centrais é uma meta, mas ela distorce de maneira inegável os preços no mercado financeiro. Ao não incorporar os conhecimentos e informações dos incontáveis agentes econômicos, mas apenas a visão limitada e distorcida da autoridade monetária, a taxa de juros administrada propaga falsos sinais e informações equivocadas, induzindo empreendimentos com grande probabilidade de fracasso.

5. Um aspecto fundamental do sistema de livre mercado, o respeito ao direito de propriedade, não vigora no sistema financeiro. As regras vigentes hoje permitem o regime de coeficiente de caixa fracionário, ou seja, dos depósitos recebidos apenas uma fração permanece no caixa à disposição dos depositantes. A adoção do coeficiente de caixa fracionário implica alavancagem dos recursos realmente existentes nos cofres das instituições financeiras. Os bancos, ao receberem o depósito de um cliente com o compromisso implícito de guardá-lo em segurança, em função dos mecanismos de alavancagem, emprestam o dinheiro recebido para dezenas de outros clientes sem autorização expressa do depositante inicial. No caso dos bancos americanos o grau de alavancagem chegou a 32, ou seja, para cada dólar depositado o banco emprestava 32. Nos bancos brasileiros, mesmo escaldados pela recente crise que motivou o PROER, o grau de alavancagem passa de 12. O depositante tem seu direito de propriedade desrespeitado e o banco cria moeda do nada mediante expedientes meramente escriturais, atividade que, a rigor, não se distingue da simples falsificação de moeda. Note-se que os modernos instrumentos financeiros sobre os quais a mentalidade estatista e antilibertária joga a responsabilidade da crise atual não passam de novas e criativas maneiras de se cometer o velho pecado do multiplicador bancário.

6. Diante de uma corrida bancária, situação em que os diversos clientes comparecem em massa aos bancos para resgatar seus depósitos, um banqueiro alavancado estaria em virtual falência. Entretanto, o detentor de carta patente bancária desfruta de outro privilégio que o distingue dos empresários capitalistas comuns. Neste caso, vem em seu socorro o banco central e põe à sua disposição numerário suficiente para impedir a quebra do banco. Esta ação do banco central, como emprestador de última instância, para proteger os interesses do banqueiro, ao aumentar a massa monetária, gera inflação, prejudicando a população em geral, que terá parte de sua riqueza sequestrada.

Em resumo: o sistema financeiro em seu desenho atual não é um sistema de livre mercado nos marcos das regras universais do direito. Trata-se de um processo caracterizado por monopólio governamental, monopólios privados por concessão estatal, por preços administrados, pela iniciativa empresarial severamente tolhida. Além disso, no sistema financeiro, direitos fundamentais, como, por exemplo, o de propriedade, são desrespeitados, vigem privilégios inaceitáveis como a permissão de emitir moeda falsa. Assim o sistema financeiro está muito mais próximo do chamado socialismo do que do capitalismo.

Não se pode portanto aceitar que a crise atual seja decorrente do livre mercado. O que entrou em crise foi um modelo fortemente regulado pelo Estado, sob o regime de preços administrados, onde o desrespeito aos princípios fundamentais do Direito é permitido. Como nada do que foi exposto aqui foi cogitado e atribuiu-se a crise à uma insuficiência de controle num setor já altamente controlado, pode-se prever com segurança que mais crises advirão.


 * Físico pela UFMG, Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental pela ENAP e Mestre em Economia da Escola Austríaca pela Universidad Rey Juan Carlos de Madri.