Conheço muita gente que afirma que o socialismo marxista é uma forma de humanismo. Para essas pessoas não adianta mostrarmos as monstruosidades do socialismo real. Aliás, muitos de nossos livros didáticos de História até os anos 80 enfatizavam as grandes realizações econômicas de Stalin ou o igualitarismo de Mao Tsé Tung. Só mais recentemente começaram a mostrar o fracasso do socialismo. Com muito custo.
Hoje muitos historiadores de esquerda reconhecem os horrores cometidos por Stalin, Mao ou Pol Pot. Pelo menos até certo ponto. Contudo, é bom ressaltar, não deixam de admirar o velho Marx. Eles e outros “intelectuais” de esquerda, com a poderosa ajuda de seus amigos na “midia”, espalharam, com grande sucesso, que os dirigentes dos regimes socialistas deturparam Marx. Que pena! Curioso é que não se perguntam como é possível que tantos milhares de companheiros tão idealistas não tenham entendido a ideologia que seguiram com uma fé de causar inveja às mais radicais seitas religiosas.
Vejamos o caso da Revolução Russa. Por dezenas de anos ela estabeleceu o terror sobre seus cidadãos. Entretanto, até a denúncia de Kruschev sobre os crimes de Stalin, marxistas do mundo inteiro ainda vendiam a ideia que o regime lá implantado era superior às democracias do Ocidente. A cegueira era tão grande que os militantes que deram origem ao PCdoB, julgando que os ideais revolucionários estavam sendo traídos em Moscou aderiram com entusiasmo ao marxismo maoísta. E depois à Albania!…
Quando não havia mais desculpas possíveis nasceu a cantilena que citamos acima: “O socialismo real não era marxista”. E para não ficarem marcados pelos massacres realizados contra tantos povos criaram outros chavões: “A Revolução russa teria sido diferente se Lenin tivesse vivido mais alguns anos ou se Trotsky tivesse sido vitorioso na sua disputa pelo poder contra Stalin.
Será verdade?
Nem um pouco. A história nos mostra que a violência institucionalizada está na gênese revolucionária socialista já nos escritos de Marx (1). Na verdade o ideal da violência já havia intoxicado os jacobinos da Revolução Francesa e, no século XIX, cativou intelectuais marxistas e anarquistas. A psicologia desses revolucionários é bem descrita pelo historiador de Harvard, Richard Pipes em História Concisa da Revolução Russa (2):
A filosofia dos intelectuais revolucionários
“São os intelectuais radicais que transformam as demandas imediatas em uma força destrutiva que tudo consome. Eles não desejam reformas, mas a obliteração completa do presente, para criar uma ordem inédita, fundamentada numa mítica Idade Dourada. Originários em sua maioria da classe média, os revolucionários profissionais consideram-se os únicos a expressar os verdadeiros interesses das “massas”, “Em 1879, cerca de trinta intelectuais – em uma nação de cem milhões – nomearam-se “Vontade do Povo” formando uma organização terrorista clandestina com a intenção declarada de assassinar Alexandre II) cujas modestas reivindicações eles desprezam. Pela insistência que nada pode ser mudado para melhor a menos que tudo seja mudado, convertem as revoltas populares em revoluções. Essa filosofia, mistura complicada de idealismo e luxúria pelo poder, abre as portas a um conflito permanente. E uma vez que a sobrevivência das pessoas comuns vincula-se a um ambiente estável e previsível todas as revoluções pós 1789 têm terminado em desastre.” (p.14)
Logo depois – ao mencionar o fim do socialismo real soviético – Pipes acrescenta:
“Para o autor destas linhas, que estudou o assunto durante a maior parte de sua vida, a Revolução Russa descortina uma tragédia, cujas cenas se sucedem inexoravelmente a partir da mentalidade e do caráter de seus protagonistas. Alguns podem sentir-se reconfortados, imaginando-a como resultado de grandes forças econômicas e sociais “inevitáveis” . Mas as condições “objetivas” não agem. São apenas uma abstração que dá origem às decisões subjetivas tomadas por relativamente poucos homens ativos na política e na guerra.” (p.15)
A mentalidade de Lenin
Aproveito para responder à questão que coloquei no início: A Revolução Russa seria menos violenta, menos criminosa, nas mãos de Lenin e Trotsky?
“Em contato frequente com ele (Lenin), ao longo da última década do século passado Struve recorda que seu estado de espírito predominante (…) era o ódio. (…) Ele odiava não somente a autocracia existente (O Czar) e a burocracia, não apenas a autoridade policial, ilegal e arbitrária, mas seus antípodas – os ”liberais” e a “burguesia”. Seu rancor tinha algo de repulsivo e terrível; enraizado em emoções repugnâncias concretas, animais, era abstrato e frio, ao mesmo tempo, como Lenin inteiro”. (op.cit. 117) (…)
“Ele conhecia apenas duas categorias de homens – amigo e inimigo – os que o seguiam e o resto. Em 1904, muito antes de juntar-se a Lenin, Trotsky comparou-o a Robespierre, que só reconhecia “dois partidos – o dos bons e o dos maus cidadãos”. Essa tradução do contraste, ou diferença normal entre “eu/nós-vocês/eles” para o dualismo irreconciliável de “amigo-inimigo”, acarretou duas importantes consequências históricas”.
Em seguida Pipes comenta sobre a “incapacidade total (de Lenin) de transigir, a não ser por alguma razão tática. No poder, suas atitudes e a de seus companheiros impregnaram todo o regime. Em segundo lugar, provocou uma total inabilidade, ou intolerância diante de pontos de vista contrários. Enxergando em qualquer grupo ou indivíduo que não fosse membro de seu partido ipso facto uma ameaça, tornava-se imperiosa a sua eliminação. Dizer que Lenin não aceitava críticas parece pouco: ele simplesmente não as ouvia. Como dizia um escritor francês, um século antes, pertencia àquela categoria de homens que sabem tudo, exceto o que se fala deles. Com ele só havia duas opções: concordância ou luta. Tais são as sementes de uma mentalidade totalitária.” (p. 118)
Infelizmente para os russos as sementes germinaram, cresceram, reproduziram-se. Seus frutos, como veremos, foram ódio e injustiça, despotismo e massacres. Contra tudo e contra todos. Até contra os primeiros companheiros de Revolução. (3)
NOTAS:
1. Nessa linha vale a pena ler os anexos do livro “Marxismo, de André Piettre, Zahar, RJ, 3ª edição, 1969, de onde retiramos o seguinte trecho do Manifesto Comunista de 1848:
…”os comunistas desdenham a dissimulação de suas ideias e projetos. Declaram abertamente que não podem atingir seus objetivos senão com a destruição, pela violência, da antiga ordem social. Que as classes dirigentes tremam à idéia de uma revolução comunista! Os operários nada têm a perder, exceto suas cadeias. Têm todo um mundo a ganhar”
2. Pippes, Richard. História Concisa da Revolução Russa. Tradução de T. Reis – rio de Janeiro: BestBolso, 2008.
3. Em debate com Guillon, por ocasião do bicentenário da Revolução Francesa, o historiador François Furet defendeu a tese que a Revolução era necessariamente ditatorial e violenta. Na Russia a tragédia foi repetida. Stalin não teve pejo em eliminar antigos companheiros de Revolução nos famosos expurgos dos anos 30.
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Na parte II do artigo, veremos como Lenin utilizou o terror durante seu governo.
* * Mestre em História Social pela Universidade de São Paulo, pós-graduado em Estudos Brasileiros pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, especialista em Ciência Política pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, graduado em História pela UNIFAI. Professor Assistente III na Universidade Presbiteriana Mackenzie de 1987 a 2007. Atualmente, leciona na FACCAMP, onde atua como professor de História Moderna, História Contemporânea e Cultura Brasileira e no Seminário Maria Mater Ecclesiae do Brasil, em Itapecerica da Serra como professor de História, Geo-Política e História da Igreja.
É Presidente da Oliver Empreendimentos Educacionais, SP.
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