É enorme a quantidade de pessoas que atribuem ao Poder Público um amplo leque de funções e responsabilidades. Se perguntarem a respeito de qualquer tema diretamente relacionado ao dia-a-dia da população, a opinião corrente dirá: é um direito, portanto, cabe ao estado. Esse anseio de parte da sociedade é oriundo da própria ação do agente político, que tem na promessa de garantir todos os direitos possíveis, a despeito de não prover à maioria e prover mal à minoria, sua moeda de troca para se manter na estrutura de poder que o beneficia e o elege e reelege.
A Constituição Brasileira é um sintoma dessa mentalidade. Concebida e aprovada sob a ressaca dos 20 anos de um governo militar, a Carta Magna é extensa, detalhada, confusa e desequilibrada. Originalmente, continha 250 artigos. Há cabimento uma Constituição elencar como direito até o piso salarial proporcional à extensão e à complexidade do trabalho? Espanta-me é que dentre os mais de 200 artigos não haja unzinho sequer dedicado a nos garantir fama, glória, dinheiro, poder, ou, sei lá, uma vaga no Big Brother Brasil.
Para efeitos comparativos, a Constituição do Chile tem 129 artigos, a da Argentina tem 129 artigos, a da Alemanha tem 146 artigos, a dos Estados Unidos tem sete artigos originais e 27 emendas. O Reino Unido não tem uma Constituição como a conhecemos, mas um conjunto de leis criadas no Parlamento (Statute Law), decisões judiciais (Common Law e Cases Law) e as Convenções Constitucionais.
Além dos números, uma diferença marcante entre a Constituição Brasileira e as dos demais países (não apenas os citados) é a inserção de direitos sociais que não deveriam ser matéria constitucional e são de impossível provisão. Ninguém de boa fé seria contra assegurar às pessoas emprego, renda, saúde, habitação etc. Mas essas garantias impõem ao estado o papel de provedor daquilo que foi prometido e de coator, tanto dos pagadores de impostos que o financiam quanto dos empreendedores obrigados a prestar alguns daqueles serviços a preços abaixo dos de mercado — em alguns casos, até mesmo do custo.
Armada essa estrutura institucional e legal, é perfeitamente natural que uma pessoa reaja quase sempre da mesma forma ao perder o familiar por falta de vaga nos hospitais: a saúde é um direito que lhe foi negado. Ela não está errada. O art. 6º da Constituição define como “direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. É como se eu chegasse na sua casa durante o jantar e fizesse um belo discurso: “Salve, salve, minha gente! É o seguinte: vocês têm direito à moradia, à saúde, à escola, às terra dos outros, desde que improdutivas (se não forem, a gente dá um jeito). De lambuja, para a vovó ali, uma dentadura nova; para o bebezinho, uma linda chupeta sabor tutti-frutti. Mas é o seguinte, todo mês eu venho aqui pegar 36,56% de tudo o que o papai, a mamãe e a vovózinha ganham. Não se preocupem. Confiem em mim.”
Sei que vocês sabem, mas permitam-me a repetição sistemática para lembrar-lhes e motivá-los a difundir a informação: quem paga pelos direitos sociais não é o estado, somos nós (concorde-se ou não).
A nota dissonante na existência de tais direitos na Constituição e na manutenção sem oposição do discurso mantenedor dessa leviandade social é que a garantia legal e as promessas retóricas se mantêm vigorosas a despeito de os serviços públicos serem prestados de forma ruim e precária — quando são prestados. E há gente que defenda a Carta Magna sob o argumento de que esta “promoveu a diminuição do descompasso existente entre o direito e os fatos sociais”, e “informou e conformou todo o corpo normativo pátrio com os princípios genéricos do respeito à dignidade da pessoa humana, da liberdade e da igualdade”. O que a Constituição fez foi tipificar uma utopia. Os resultados são exemplares: desejos ilimitados para realizações limitadas geram insatisfação, impotência e angústia.
Há uma obsessão por direito sociais. Direito social não passa de uma weasel word. O 'social' esvazia o significado da palavra 'direito'. Numa conferência realizada em Brasília em 1981, Hayek aplicou a expressão ao termo justiça social:
“Weasel, doninha, é aquele animal capaz de sugar o conteúdo de um ovo (sem quebrá-lo) sem que se note que a casca está oca. Social é, neste sentido, uma weasel word, e quando ligada a algum termo tradicional, a palavra perde o seu significado. Nós temos uma economia de mercado, mas quando você a classifica de uma economia social de mercado, já não significa mais nada. Você tem a justiça, mas quando você diz justiça social, ela não quer dizer mais nada. Você tem o Estado de Direito — o que os alemães chamam de Reichstadt — mas, quando você junta o termo social ao Reichstadt, novamente isto não quer dizer nada”. [1]
Não se trata aqui de uma defesa contra a existência de direitos na Constituição. Proponho que a Constituição, se necessária na sua forma escrita, trate dos direitos e liberdades individuais, além de definir os poderes e suas respectivas limitações das várias esferas do governo (Executivo, Legislativo e Judiciário). Quanto menos artigos numa Constituição, quanto menos leis em vigor ou em vias de, maior o grau de mobilidade dos indivíduos e da sociedade. Richard Posner dá um conselho valioso: seria bom que os estudantes da Constituição prestassem mais atenção aos aspectos positivos de seu objeto de estudo, em particular as causas e consequências dos direitos, deveres, poderes e estrutura constitucionais. [2]
As leis que promovem obrigações são as mesmas que arruínam nosso senso de responsabilidade, porque há uma crença disseminada, inclusive entre os profissionais do Direito (talvez justamente por causa da profissão), de que as leis garantem os direitos. O que a lei faz, geralmente, é criar novos problemas ao tentar disciplinar determinadas condutas e relações, não propriamente resolver as questões que pretendia solucionar quando foi criada. Nossa legislação penal, por exemplo, impede que uma nova lei retroaja para prejudicar o autor de um crime. De nada adianta defender uma lei mais dura contra um criminoso que praticou uma barbaridade porque ele não será condenado com base na nova lei.
No plano cultural, seria ótimo convencer os políticos do Poder Legislativo (vereadores, deputados estaduais, federais e senadores) de que sua função principal é fiscalizar, não fabricar leis. No plano político, convencê-los de que a revogação total (ab-rogação) ou parcial (derrogação) sistemática das leis é o melhor caminho para o país. Convencer é mais inteligente, menos oneroso, porém mais difícil do que defender a criação de mais leis que os obriguem a agir nesses dois sentidos sem qualquer garantia de que sejam respeitadas.
Notas
[1] HAYEK, Friedrich. Hayek na UnB, Coleção Itinerários, Brasília: Editora das Universidade de Brasília, 1981, p. 16.
[2] POSNER, Richard A. Overcoming Law, Harvard: Harvard University Press, 1997, p. 171.
* Publicado originalmente em 12/02/2010
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